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Advocacia Bittar > Não categorizado

Delatores da Lava Jato: penas menores do que o previsto e patrimônio mantido

Enquanto presos comuns se amontoam em cubículos, empresários, diretores e doleiros que firmaram acordos de colaboração premiada com a Justiça no âmbito da Operação Lava Jato vivem uma realidade bem diferente. Responsáveis por desvios milionários, pagamentos de propina a agentes públicos, lavagem de dinheiro, formação de cartel entre outros crimes que lesaram os cofres públicos, eles negociaram com o Ministério Público Federal acordos nos quais puderam manter parte do patrimônio obtido muitas vezes de forma ilegal, além de terem as penas reduzidas além do que prevê a lei de colaborações. Hoje muitos estão em coberturas de luxo e condomínios abastados cumprindo suas penas. O juiz Sérgio Moro já condenou, até o momento, 87 pessoas, e no total a Lava Jato firmou mais de 140 acordos de delação.

Alberto Youssef chega à Polícia Federal em Curitiba ANIELE NASCIMENTO (AGP/AE)

O caso do doleiro Alberto Youssef, por exemplo, é emblemático. Ele é um dos principais delatores do esquema de corrupção da Petrobras, e em seu caso a redução de pena foi muito superior aos dois terços previstos em lei. Condenado em vários processos a mais de 121 anos de prisão, conseguiu emplacar em seu acordo uma cláusula que prevê no máximo o cumprimento de três anos em regime fechado. Ele cumpriu dois anos e oito meses de prisão, e migrou para o regime fechado domiciliar, onde permanecerá mais quatro meses. Atualmente mora em um edifício de luxo localizado a cinco quadras do parque do Ibirapuera, em um dos metros quadrados mais caros da capital paulista – com varanda gourmet e equipes de segurança da empresa Haganá rondando o quarteirão. No dia em que a reportagem visitou o local, o doleiro estava se exercitando na academia do prédio, de acordo com funcionários do condomínio.

O artigo 4º da lei de delações premiadas, sancionada pela ex-presidenta Dilma Rousseff em 2013, prevê que o colaborador possa ter a pena reduzida em até dois terços ou até mesmo extinta. Isso se as informações oferecidas em troca levarem à recuperação de ativos, prisão de peixes maiores ou previnam outros crimes. Mas no âmbito da Lava Jato, a lei tem sido aplicada de forma diversa.

O ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, um dos primeiros presos pela Lava Jato, em março de 2014, foi responsável por abrir a caixa de Pandora do esquema de corrupção nas diretorias da petroleira. Dono, junto com seus familiares, de 12 empresas offshores abertas para movimentar milhões de dólares, foi condenado por Sérgio Moro em sete ações penais a um total de 128 anos de prisão. Desde o final de 2016 ele já cumpre pena em regime aberto sem tornozeleira eletrônica. Ele deixou o regime fechado um dia após seu acordo de delação premiada ter sido homologado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, morto no início deste ano. No total ficou cinco meses atrás das grades. Atualmente, mora em um condomínio de luxo na região serrana do Rio de Janeiro. Posteriormente o Ministério Público Federal pediu que Moro suspenda os benefícios de sua delação, uma vez que ele e suas filhas teriam mentido e tentado ocultar provas nos depoimentos, de acordo com o Buzzfeed. Até o momento o magistrado não se posicionou sobre o pedido.

Em nota, o MPF, responsável pelos acordos, defende a redução das penas além do que está previsto na lei. “O juiz, nesses casos, tem o poder máximo que lhe pode ser deferido pela lei, que é o de conceder perdão, ou ainda o poder bastante significativo de substituir a pena privativa de liberdade pela restrição de direitos”. Logo, prossegue o texto, “por qual motivo então, considerando que o juiz pode o mais – o perdão ou a substituição pela restritiva de direitos -, não poderia ele ir além da redução da pena em 2/3?”. Para o órgão, é importante ressaltar que “é inerente ao sistema de colaboração a adequação da pena à importância da colaboração para as investigações”.

A força-tarefa da Lava Jato fala do assunto com propriedade. Afinal de contas, mesmo sofrendo críticas com relação a seus métodos, os procuradores já conseguiram repatriar mais de 4 bilhões de reais, um número recorde no país. Mas os investigadores ainda estão atrás de outros 6 bilhões, que, de acordo com o site de prestação de contas da Operação, “são alvo de recuperação via acordos de colaboração”. Além disso, procuradores de outros países da América Latina onde empreiteiras brasileiras também pagaram propinas a agentes públicos – os desdobramentos internacionais da Lava Jato – vieram ao Brasil no início do mês para alinhar uma estratégia comum de combate à corrupção e aprender com a equipe brasileira.

O lobista Fernando Soares, vulgo Fernando Baiano, considerado o braço do PMDB no esquema da Lava Jato, é outro delator que cumpre pena em regime domiciliar. Mas sua residência não é qualquer uma: trata-se de uma cobertura de 800 metros quadrados na orla da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, um dos metros quadrados mais caros do país. Pelo acordo de colaboração ele terá que pagar uma multa de 2 milhões de reais.

Para Walter Bittar, advogado e autor do livro Delação Premiada – Direito Estrangeiro, Doutrina e Jurisprudência (Editora Lumen Juris), existe uma falta de critério na aplicação das penas. “A lei é omissa nesse ponto: ela diz que a pena pode reduzir em até dois terços ou pode perdoar”, afirma. “Mas como os juízes podem optar por perdoar eles estão agindo de forma arbitrária, o que não gera segurança e gera desproporcionalidade entre o crime cometido e o benefício concedido. Qual o critério?”, indaga. O advogado também questiona o valor das multas aplicadas: Youssef, por exemplo, terá que pagar 311.200 reais. “O dano moral causado à coletividade é difícil mensurar”, diz.

Mas lobistas, doleiros e ex-diretores da Petrobras não são os únicos que conseguiram negociar penas mais amenas. É o caso do empreiteiro Ricardo Pessoa, dona da UTC Engenharia, que foi beneficiado por um acordo de delação. Condenado após desdobramentos da Lava Jato a mais de oito anos de prisão por corrupção e pertencer a uma organização criminosa, ele cumpre pena em regime aberto diferenciado, no qual não pode viajar ao exterior. Ele ficará neste regime até 17 de novembro, e depois terá cumprido sua pena. No total, Pessoa ficou seis meses preso em regime fechado.

No entanto, existe uma expectativa de que os empreiteiros que começam a assinar seus acordos de delação apenas agora, tardiamente, enfrentem um cenário diferente. É o caso dos executivos e diretores da Odebrecht, a última empresa de construção a admitir seus malfeitos e colaborar com a Justiça. A empresa negou o quanto pôde sua participação no esquema de corrupção, até que outras delações tornaram insustentável a negação de Marcelo Odebrecht – ele já está preso em regime fechado há sete meses, e deve amargar ao menos mais dez meses na cela.

Lavagem de dinheiro sujo

Para além das penas e condições nas quais ela é cumprida, o caso de Youssef tem outra peculiaridade. O contrato firmado por seus advogados com o MPF contém uma cláusula de performance: ele poderá manter 2% de todo o dinheiro que ajudar a recuperar. A quantia pode chegar a até 20 milhões de reais, a metade do patrimônio do doleiro que foi confiscado pela Justiça. Estima-se que ele tenha ajudado a movimentar mais de um bilhão de dólares. Ao jornal O Globo o advogado Antonio Figueiredo Bastos, um dos defensores de Youssef, afirmou à época do acordo que “não se trata de privilégio, pelo contrário, tudo foi negociado estritamente dentro da lei”, e que “a delação é premiada, portanto, pressupõe vantagens ao meu cliente”. Soma-se a isso o fato de que, pela letra da lei, Youssef não poderia fazer a delação premiada na Lava Jato: ele já havia feito acordo semelhante em 2003, durante as investigações do escândalo do Banestado, e mentiu em seus depoimentos.

Bittar afirma que a devolução do patrimônio dos delatores equivale “ao Estado lavar dinheiro sujo”. “Trata-se de um patrimônio obtido de maneira ilícita. Se o Estado devolve ao infrator mesmo via delação premiada esses valores, está na prática lavando dinheiro”, diz. De acordo com o advogado, essas cláusulas no acordo de colaboração com a Justiça tornam o crime vantajoso. “No final das contas ainda está compensando cometer os crimes e delatar”, diz. O advogado ressalta ainda que nenhum benefício concedido pode tornar “atrativo” para um criminoso “cometer ilícitos”.

O jurista Maierovitch aponta que críticas aos métodos de delação premiada são comuns em vários países nos quais esse mecanismo existe. “Na Itália as autoridades foram muito criticadas por devolver 100% do patrimônio do mafioso Tommaso Buscetta”, diz. Buscetta, que chegou a morar no Brasil por anos, foi um dos primeiros criminosos ligados à Cosa Nostra que colaborou com a Justiça. Seu depoimento é visto até hoje como sendo responsável por ferir de morte a organização siciliana, e ele também teve sua pena de prisão cancelada pelas autoridades. “E lá ainda existem casos nos quais o Estado de certa forma paga para o delator. Isso ocorre nos casos em que o colaborador precisa mudar de nome, cidade, e ser protegido ativamente pelas autoridades”, explica. Maierovitch ressalta, no entanto, que este caso tem relação com criminosos ligados ao crime organizado e a grupos terroristas.

Para o MPF, apesar de complexas, “não há qualquer ilegalidade nas cláusulas de desempenho”. Esse mecanismo seria necessário “para a superação de impasses em negociações, bem como para criar um incentivo extra para a colaboração”. De acordo com a nota do órgão a cláusula de desempenho “ faz parte da natureza pragmática e utilitária do instituto [da colaboração]”. Além disso, continua o texto, “o que é comprovadamente produto do crime sempre é perdido (…) não se pode confundir produto do crime com o dever de indenização”. No entanto especialistas apontam que em muitos casos é uma operação complexa separar dinheiro sujo do dinheiro limpo.

O advogado Marlus Arns de Oliveira defende cerca de 20 pessoas investigadas na Lava Jato. Já negociou acordo de colaboração para quatro de seus clientes – “Mas todos tiveram interesse em conhecer este dispositivo”, afirma. De acordo com ele, não há “previsão legal” para cláusulas de desempenho. “Quanto mais a prova oferecida pelo colaborador servir, mais benefícios ele vai ter, mas não benefícios financeiros, e sim de redução de pena”, afirma. Oliveira afirma também que o patrimônio obtido de forma ilegal não pode ser mantido: “Você pode manter sim o patrimônio obtido de forma lícita, e esse patrimônio acaba sendo usado para pagar multas”.

Outro advogado crítico às cláusulas de performance é Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay. Ele defende vários réus da Lava Jato, inclusive alguns ex-funcionários da Odebrecht, além de ter trabalhado para Youssef. Para ele, a cláusula “foge ao sentido da delação”. “Ela incentiva o criminoso a não apenas entregar informações para as autoridades, mas também a ser um agente do Estado”, afirma. Kakay critica também o recall de algumas delações. “Quem vai fazer delação hoje sabe que pode mentir se quiser, proteger pessoas, omitir informações, e caso seja pego na mentira faz um recall e está tudo bem”, diz.

Já o jurista Walter Maierovitch, estudioso da operação italiana Mãos Limpas, que serviu de inspiração para a Lava Jato, discorda. Ele afirma que precisa ser sempre colocado no primeiro plano em uma delação premiada o interesse do Estado. “O direito premial [que oferece benefícios ao colaborador] é imposto no interesse do Estado, e não no interesse individual do delator. O que interessa o Estado? Compete ao Ministério Público avaliar: é uma relação custo benefício”, diz. Com essa premissa em vista, mesmo que os benefícios oferecidos não estejam previstos na lei, “sua interpretação e aplicação é aberta, levando-se em conta a dificuldade que as autoridades têm para apurar alguns crimes sem a ajuda de delatores”.

Muitos delatores, histórias repetidas

Maierovitch destaca, no entanto, que a falta de experiência com a lei de colaborações premiadas no país pode levar a alguns equívocos. Ele cita como exemplo os 77 delatores da empreiteira Odebrecht. “Estas delações vão se multiplicando e premiando pessoas, quando no fundo você poderia passar um pente fino: entre as 77 vão haver informações repetidas e fatos menores”, afirma.

Para Bittar, o alto número de funcionários da empresa pode provocar o que ele chama de “delação da delação”. “É a delação que corrobora o que foi dito em outra delação. O STF já entendeu que a delação quando corroborada por outra delação não tem valor, precisa de provas”, afirma. O advogado questiona ainda o fato de que, uma vez identificada a responsabilidade pelos crimes, “por que todos vão receber benefícios?”. “O que está acontecendo no Brasil agora? Todo indivíduo que é preso e condenado em primeira instância já começa a cogitar a delação. Passa-se de um processo investigativo para uma barganha”, afirma.

O advogado Marlus Arns de Oliveira, afirma que a “vulgarização do uso da delação premiada traz o risco de acabar com o instrumento”. “Hoje assistimos no país uma proliferação muito grande do instituto. E aí ele ganha um ar de salvo conduto. Se todo mundo faz acordo ninguém é condenado”, diz.

A punibilidade como categoria substantiva na estrutura geral do delito

A punibilidade como categoria substantiva na estrutura geral do delito

A punibilidade como categoria substantiva na estrutura geral do delito (Walter Barbosa Bittar)
SUMÁRIO:
1. Introdução;
2. A terminologia punibilidade: alcance e efeito;
3. Enfoque quanto ao conceito analítico de delito;
4. A punibilidade como categoria autônoma;
5. Conclusão.

  1. Introdução

Pouco aprofundado, mas de crescente importância, em especial pelo estado atual da doutrina do fato punível, focada no desenvolvimento do pensamento teleológico-funcional e racional, é a reflexão sobre a postura da doutrina majoritária, que vem se inclinando para a construção de uma categoria específica para acolher os chamados pressupostos adicionais da punibilidade localizados fora do injusto culpável ou da responsabilidade penal , tais como as condições objetivas de punibilidade, escusas absolutórias e as causas de liberação de pena (incluídas aqui a questão da imunidade parlamentar ).
Não obstante a falta de profundidade no tratamento do tema, bem como o panorama dos estudos até agora existentes mostrarem-se, absolutamente inconcludentes, resta importante destacar a advertência de Jorge de Figueiredo Dias de que, o esforço em contribuir para o desenvolvimento do tema, que representa a racionalização, representada pela doutrina do crime nos capítulos da ação, da tipicidade, da ilicitude, da culpabilidade, não poderá evitar a frustração quanto ao tratamento tradicional destinado a esta questão.
Ainda segundo o professor Figueiredo Dias, as conclusões apresentadas (negativas), afirmam que os chamados pressupostos adicionais da punibilidade se tratam de um conjunto de pressupostos que, “se bem não se liguem nem à ilicitude, nem à culpabilidade, todavia decidem ainda da punibilidade do fato; e que, juntando as chamadas ´condições objetivas de punibilidade´ às ´causas de exclusão da pena´, englobaria elementos tão diferentes, na sua estrutura, no seu relevo político-criminal e no seu significado e função dogmáticos, como p. ex. – segundo muitos CPs – a consumação ou  a tentativa de suicídio no crime de incitamento ou ajuda ao suicídio ou a prática de um ilícito-típico no crime cometido em estado de embriaguez; a impunibilidade de votos e opiniões de parlamentares; o fato de o agente ser encontrado no país quando o crime tenha sido praticado no estrangeiro; a prova da verdade da imputação da honra; a desistência da tentativa, etc.!“
Outros autores terminam por não aceitar a categoria da punibilidade, reconduzindo seus elementos ao injusto culpável ou a individualização da pena, não obstante coincidam, ao tratamento que conferem a punibilidade, em muitos pontos com os partidários da punibilidade .
Na verdade, as indagações sobre o tema da punibilidade exsurgem, conforme ressalva Rodrigo Sanchéz Rios , como um verdadeiro laboratório, onde frequentemente se antecipa a futura evolução do Direito Penal. Assim, com o intuito de participar desse intrigante tema de estudo é que o presente artigo se propõe.

2. A terminologia punibilidade: alcance e efeito
 
Conforme destaca Santiago Mir Puig , com freqüência às definições de delito acrescentam as notas de comportamento humano tipicamente antijurídico e culpável, que o mesmo seja punível. Essa discussão sobre as características particulares da existência ou não de uma categoria autônoma na definição de delito comporta ainda um esclarecimento necessário, antes de adentrar ao cerne da questão da possibilidade de se aceitar esta posição de uma parte da doutrina, pertinente à terminologia adotada para explicitar a existência de um suposto quarto elemento, chamado por uns de punibilidade e por outros de penalidade.
Ainda que a terminologia não comprometa a compreensão do tema, importa observar a posição de Guillermo Sauer , que difere a penalidade da punibilidade, afirmando que a primeira estaria por detrás da segunda, ou na maior parte das vezes. Assim, segundo Sauer, a penalidade seria o conjunto dos pressupostos positivos da pena segundo a lei, ou sentença de acordo com as exigências da idéia do Direito. A punibilidade seria então o conjunto daqueles pressupostos da pena que devem ser realizados na lei e na sentença, a fim de que se satisfaça a idéia de direito. Sauer faz ainda uma graduação: punibilidade, pressupostos da pena, fundamentos da medição da pena, correspondente a uma grande hierarquia: Direito, lei, sentença, três pontos de apoio que deveriam ser adaptados, ajustados e analisados de modo que se correspondam exatamente, que começa no reino das idéias e dos valores absolutos. Como a meta do jurista, para este autor, é a concreção da justiça na vida social, da mesma forma vale para o Direito penal: a punibilidade a que se configurar concretamente nos fundamentos de medição da pena, resultando sucessivas exigências para a legislação, a jurisprudência e a ciência.
Contudo, esta distinção não apresenta nenhum dado relevante para que seja adotada, tampouco se justifica. Nesta seara, Francisco Muñoz Conde e Mercedes Garcia Arán , por exemplo, que preferem utilizar o termo penalidade, afirmam que a penalidade ou punibilidade é uma forma de recolher e elaborar uma série de elementos ou pressupostos que o legislador, por razões utilitárias, diversas em cada caso e alheias aos fins próprios do Direito Penal, pode exigir para fundamentar ou excluir a imposição de uma pena e que somente tem em comum que não pertencem nem a tipicidade, nem a antijuridicidade, nem a culpabilidade, ou seja empregam o termo penalidade como sinônimo de punibilidade. Da mesma forma Jiménez de Asúa – ao discorrer sobre a suposta quarta categoria do delito – emprega ambas as expressões (penalidade e punibilidade) como sinônimas não fazendo diferença à utilização de um ou outro termo, que na realidade tem de fato um único significado. Dessa forma, não há motivos para diferenciar penalidade de punibilidade, pois, em regra, estas expressões, além do próprio termo pena, podem ser utilizadas como sinônimos, não alterando seu conteúdo.

3. Enfoque quanto ao conceito analítico de delito

Para uma melhor investigação do tema, parece-nos imprescindível, na tentativa de rever a categoria da punibilidade, analisar a questão com mais ênfase em face do conceito analítico, a fim de verificar a possibilidade de conhecer sua consistência e fundamento. Assim, importa observar, que a importância do tratamento do tema sob o prisma analítico, reside na sua finalidade principal de aprofundar o estudo do desenvolvimento interno das normas penais, facilitando a aplicação do direito. Neste sentido, o conceito contribui decisivamente para melhorar a visualização dos problemas e casos penais, de interesse prático imediato, pois, não fosse possível a dissociação do delito em elementos singulares, não se saberia como tratar problemas de difícil solução, cuja doutrina vem apresentando dificuldade em apresentar uma justificação sistemática clara , como por exemplo, as condições objetivas de punibilidade . Mais: uma consideração unitária ou sintética do delito leva fundamentalmente ao terreno das instituições e das apreensões irracionais , daí também ressaltar a importância do conceito analítico.
Reforçando a importância deste conceito Cezar Roberto Bitencourt salienta também que “os conceitos formal e material são insuficientes para permitir à dogmática penal a realização de uma análise dos elementos estruturais do conceito de crime” . Ainda segundo Bitencourt esse conceito continua sustentado por finalistas e não finalistas , o que autoriza o raciocínio de que uma visão teleológico funcional não prescindiu deste.
Em principio, tomando-se por base o conceito analítico, importa buscar um modelo de injusto culpável que seja possível adotar para qualquer delito, repelindo-se, desde já, qualquer possibilidade de construção de um conceito relativo, ou seja, que sirva somente para determinados crimes, em especial quando presente um pressuposto adicional de punibilidade. Ressalte-se ainda que alguns autores preferem estudar uma parte do problema no tipo, embora sem uma justificação sistemática clara , o que não parece uma solução adequada, eis que as questões pertinentes à temática da punibilidade, se dissipam em uma série de elementos heterogêneos, mas que não recomendam, apenas por sua face heterogênea, e por que não dizer policrômica, que o tratamento da matéria seja desenvolvido de forma isolada ou casuística, partindo-se de exceções para criar uma regra de interpretação que não se preste a todas as normas penais.
Em sentido contrário as nossas assertivas, Claus Roxin sustenta que a punibilidade não é uma categoria própria do conceito analítico de crime, mas funciona como um filtro para excluir a sanção penal em alguns casos específicos. Noutra vertente, amplo setor doutrinário, alinha, ao conceito de delito, ao lado do injusto e da culpabilidade, também a punibilidade .
Embora seja possível perceber que há uma tendência crescente em um setor da doutrina , de incluir a punibilidade no conceito analítico de delito , sob o argumento precípuo, segundo Muñoz Conde e  Garcia Arán de que “(…) com a constatação positiva destes elementos tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, se pode dizer que existe delito e seu autor pode ser castigado com a pena que se assine em cada caso concreto ao delito na lei. Em alguns casos se exige, sem embargo, para poder qualificar um fato como delito à presença de alguns elementos adicionais que não pertencem nem a tipicidade, nem a antijuridicidade, nem a culpabilidade. Assim, por exemplo, se exige para castigar a quebra punível a prévia declaração de insolvência….” e concluem: “Se fala nestes casos de penalidade e se considera que esta categoria é também um elemento pertencente a teoria geral do delito” .
Para os defensores do conceito de que a punibilidade é uma categoria substantiva na estrutura do delito, tal entendimento se justifica porque o injusto e a culpabilidade, não são suficientes, sozinhos, para justificar a pena, pois em todos esses casos deve assegurar-se ademais a necessidade prática de se fazer uso da mesma para a proteção da ordem social . A circunstância colocada pelos defensores da punibilidade como categoria autônoma faz supor que além do injusto culpável é possível situar uma série de elementos cuja função é dar conteúdo a um juízo sobre a necessidade de castigo. Esta categoria nova que tem também como função agrupar todos os elementos que não dependem do injusto e da culpabilidade e os pressupostos processuais por meio dos quais se valora a perseguibilidade do fato .
Entretanto, as conclusões apresentadas por estes defensores esbarram no argumento de que reconhecer elementos fora do injusto culpável, que limitam a punibilidade, não implica em criar uma categoria específica, dentro do conceito analítico. O fato é que esta categoria (punibilidade) delimita o âmbito do punível, não somente a aplicação da pena, não sendo possível criar uma categoria, de exceção, dentro de um conceito que pretende justamente facilitar o estudo da norma penal, facilitando a aplicação do direito.

4. A punibilidade como categoria autônoma

Esclarecida a questão da divergência terminológica, não obstante as já mencionadas posições favoráveis à existência de uma quarta categoria do delito, denominada punibilidade, categoria que é assim cognominada “(…) para designar a última pedra do edifício do conceito de fato punível e da respectiva doutrina geral – é, sob certo ponto de vista, um conceito equívoco” .
Um ponto importante para não acatar a punibilidade como uma categoria autônoma, é o de que a própria noção de punibilidade não é inequívoca, apresentando dificuldades quanto ao seu verdadeiro alcance e sentido. Outro ponto, também relevante, é o de que não se pode admitir um conceito, cuja justificação encontre supedâneo na necessidade de acomodar os elementos que são alheios ao injusto e a culpabilidade, pois, esta forma de elaboração dogmática romperia a concepção unitária do delito e faria surgir outras tantas categorias . E mais: “(…) pode ainda acontecer, na verdade, que a punição acabe por não se dever efetivar por razões que já não têm a ver com a doutrina do fato, mas autonomamente com a doutrina da conseqüência jurídica, com a doutrina da pena” .
Este esforço da doutrina visa conseguir integrar as excludentes de punibilidade (condições objetivas de punibilidade, escusas absolutórias, causas pessoais de liberação da pena), dentro da categoria punibilidade, que abrange ainda outras circunstâncias, tais como a prescrição, a anistia e o perdão da vítima , mostrando-se “(…) um esforço artificial para manter uma visão totalizadora da estrutura do delito” . Recorda Jose Cerezo Mir que embora a punibilidade tenha conteúdo próprio, não está correta sua inserção no conceito de delito, pois as condicionantes da punibilidade (no enfoque deste penalista especificamente quanto as escusas absolutórias e as condições objetivas de punibilidade), além de possuírem natureza material diversa, são escassas na legislação penal, não se podendo asseverar que sejam elementos indispensáveis à configuração do delito. A esta conclusão pode-se arrematar com o entendimento de Nelson Hungria demonstrando que “(…) o jus puniendi não é unicamente o direito de exigir a imposição da pena cominada, mas também o direito de reclamar a execução da pena imposta in concreto. Isto está a demonstrar que a punibilidade supre o direito ou o poder de punir por parte do Estado, ou o que tem o mesmo significado, a possibilidade de aplicação da pena, a punibilidade do fato incriminado , mas não que represente um novo elemento do crime.
Destarte, a punibilidade é sempre posterior ao delito, do qual tem origem, estando por vezes subordinada ao implemento de uma condição objetiva de punibilidade, isentando o agente de pena em razão de uma condição pessoal  cuja fundamentação foge as diretrizes do Direito Penal, não apontando para um tratamento autônomo de uma determinada modalidade delitiva, apenas porque – nesses casos – justifica a exclusão da pena, alheia ao tradicional conceito analítico de delito.

5. Conclusão

Embora muito distante de uma recepção homogênea pela doutrina, certo é que não se pode deixar de ser reconhecido que o legislador moderno, em especial no chamado Direito Penal Econômico, termina por criar uma “cauda disfuncional” iminente a legislação penal tradicional, onde torna-se extremamente complexo submeter idênticos princípios e regras, dos chamados delitos tradicionais.
Mas tais questões “disfuncionais” não são exclusividade do Direito Penal Econômico, eis que já foram identificadas de longa data, não sendo nenhuma novidade para a ciência penal.
As características peculiares dos pressupostos adicionais da punibilidade estão muito distantes de uma compreensão segura de suas formas. Contudo, tal realidade, por si só, não permite o raciocínio de que exista uma quarta categoria autônoma do delito, somente pela dificuldade evidente da ubiquação sistemática desta na teoria do crime.
O ponto principal para não se admitir a punibilidade como uma categoria autônoma reside no fato de que, seria forçoso reconhecer a existência de duas formas distintas de interpretação da norma penal, sem que se estabeleça com segurança, sequer, o critério identificador  destas, ou seja, quando estaríamos diante de um conceito analítico tripartido (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) de delito, ou quando estaríamos diante de um conceito quadripartido (tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade).
Por fim, em que pese todos os problemas que afligem atualmente a ciência penal, em especial pela contribuição colhida ante a perspectiva teleológica funcional do delito, onde se pretende que a dogmática jurídico-penal, a criminologia e a política criminal estabeleçam um sistema punitivo mais justo, conforme pretende Claus Roxin , não se pode admitir uma interpretação relativista, sem que se apresente uma justificação sistemática clara.

Mestre em Direito PUC/PR. Professor de Direito Penal e Criminologia da Graduação e da Pós-Graduação da PUC/PR. Advogado criminalista.

Veja-se, por todos, PÉREZ, Octavio Garcia. La punibilidad em el derecho penal, Pamplona: Aranzadi, 1997, p. 69 e ss.

No mesmo sentido, PUIG, Santiago Mir. Derecho penal, parte general, 7ª ed., Buenos Aires: Julio César Faira – Editor, 2004, p. 150.

Questões fundamentais do direito penal revisitadas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 244.

Idem, ibidem.

PÉREZ, Octavio Garcia. Op. Cit., p. 70.

In: BITTAR, Walter Barbosa. As condições objetivas de punibilidade e as causas pessoais de exclusão da pena, Rio de Janeiro, Lúmen Júris, xiii.

Op. Cit., p. 150.

Derecho penal, parte general, Trad. Juan Del Rosal y Jose Cerezo. Barcelona: Bosch, 2000, p. 36/37.

Idem, p. 37.

Op. cit, p. 418.

Princípios de derecho penal, 3ª ed., Buenos Aires: Sudamericana, 1958, p. 417/431.

Cf. BITTAR, Walter Barbosa. As condições objetivas de punibilidade e as causas pessoais de exclusão da pena, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 1.

Cf. TAVARES, Juarez. Teorias do delito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 1.

Cf. BETTIOL, Giuseppe. Derecho penal, trad. Jose Leon Pagano, Bogotá: Temis, 1965, p. 177.

Tratado de Direito Penal, parte geral, vol. 1, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p.190.

Idem, ibidem.

Cf. PUIG, Santiago Mir. Op. Cit., p. 151.

Apud, MAPELLI CAFFARENA, Borja. Estúdio jurídico-dogmático sobre las llamadas condiciones objetivas de punibilidad. Madrid: Ministerio da Justicia, 1990, p. 50.

Neste sentido: MARTINEZ PÉREZ, Carlos B. Los delitos contra la hacienda pública y la seguridad social, Madrid: Tecnos, 1995  p. 133; FARALDO CABANA, Patrícia. Las causas de levantamiento de la pena, Valencia: Tirant lo blanch, 2000;; JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal, parte general, trad. Jose Luiz Manzanares, 4ª ed., Granada: Comares, 1993, p. 500, dentre outros.

No Brasil PAULO JOSE DA COSTA JR. modificou seu entendimento, acrescentando a punibilidade ao conceito analítico de delito por preferir adotar uma concepção quadripartida, com base no entendimento de GIULIO BATTAGLINI. Direito penal: curso completo, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 127/129.

Op. cit., p. 215.

Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco, El desistimiento voluntario de consumar el delito, Barcelona: Bosch, 1972, p. 64.

Cf. MAPELLI CAFFARENA, Borja, op. cit., p. 51.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 250.

CF. MAPELLI CAFFARENA, Borja, op. cit., p. 53.

DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit., p. 250.

Cf. MAPELLI CAFFARENA, Borja, op. cit., p. 52.

Idem, p. 56.

Curso de derecho penal español, parte general, vol. II, Madrid: Tecnos, 1998, p. 22.

Extinção da punibilidade em face do novo código penal, Revista Forense, nº 87, Rio de Janeiro: Forense, 1941, p. 580.

Esta conclusão deve ser creditada a HUNGRIA, Nelson, que elaborava suas ilações não sobre as condicionantes, mas sim sobre as causas de extinção da punibilidade, o que não impede que esta sirva para o objeto deste trabalho. Extinção da punibilidade em face do novo código penal, p. 580.

Expressão ressaltada por RIOS, Rodrigo Sanchez, in Direito penal tributário, coord. PEIXOTO, Marcelo Magalhães et. al., São Paulo: MP Editora, 2005, p. 380.

MAPELLI CAFFARENA, Borja. Op. cit., p. 50. Segundo FRAGOSO, Heleno Claudio, foi BINDING quem primeiro destacou a existência das condições objetivas de punibilidade, tendo-as disciplinado com fundamento em sua teoria das normas, Pressupostos do crime e condições objetivas de punibilidade, 1a parte, São Paulo: Revista dos Tribunais nº 738, 1997, p. 744. Segundo HASS, citado por CAFFARENA, o mérito deve ser compartilhado com FRANKE (Das Deutsche Strafgesetzbucht und die Strafsachen aus Handlungen der Zeit vo dessen Gesetzeskraft, en “GA”, 1872, 20, p. 14 e ss., op. cit., p. 16, nota de rodapé n. 4.

Política criminal e sistema jurídico-penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 82 e ss.

27.dez.90 (crime de sonegação fiscal);

Decreto-lei nº 16, de 10.ago.66;
Decreto-lei nº 47, de 18.nov.66;
Lei 4.591, 16.dez.64;
Lei5.741, de 1.dez.71, art. 9;]
Lei 6.453, de 17.out.77,art.19 a 27;
Lei 6.649, de 16.maio.79 (revogada pela lei 8.245, de 18.out.91,
definindo contravenções e crimes nos arts. 43 e 44);

Lei 6.766, de 19.dez.79,arts. 50 a 52;
Lei 7.492, de 16.jun.86 (crimes do colarinho branco);
Lei 7.646, de 18.dez.87;
Lei 8.078, de 11.set.90, arts. 63 a 78 (Crimes contra o consumidor);
Lei 8.176, de 8.fev.91 (Define crimes contra a ordem econômica);
Lei 8.212, de 24.jul.91 e Lei ;
Lei 9.605, de 12.fev.98, arts.29 a 69 (crimes contra o meio ambiente);
Lei 9.609, de 19.fev.98, art.12;
Lei 9.613, de 3.mar.98 (Lavagem de dinheiro);
Lei 9.983, de 17.jul.000;
Lei 10.028/00 (Crime de responsabilidade fiscal).
Cabe observar que a lei 9.983/00 que instituiu o crime de sonegação de

contribuição previdenciária, trouxe para a parte especial do Código Penal esta modalidade

de crime contra o ordem econômica, que estava em lei special porém, ainda fora de um

capítulo especial pertinente aos delitos econômicos, podendo indicar a existência de uma

tendência futura a fim de reunir o rol de crimes contra a ordem econômica na parte especial

do Código Penal.

Todavia, não nos parece que, a curto prazo, nosso diploma repressivo

penal,  venha a possuir um capítulo especial destinado aos crimes a ordem econômica,

embora exista de fato uma preocupação em estabelecer uma classificação, ainda que não

existam critérios definidos na legislação brasileira, “sendo impossível extrair um conceito

jurídico consistente de criminalidade econômica “ .

Esta indefinição pode resultar a favor da impunidade , em face de

fomentar discussões dogmáticas, pertinentes a jurisdição, concurso de normas, etc.,

dificultando à aplicação da lei.

Por último, cabe ressaltar que a técnica legislativa necessita ser

aprimorada, tendo em vista que a correta descrição da conduta injusta, é uma necessidade

decorrente do próprio princípio da reserva legal, ainda que reconhecidas as dificuldades

próprias de tão fluída modalidade delitiva como a dos crimes a ordem econômica.

 

7 – NOTAS CONCLUSIVAS

 

Os chamados crimes contra a ordem econômica são melhor
delineados em face de sua característica principal da tutela de bens

jurídico-penais de natureza supra individual;

Não há que se confundir crimes contra a ordem econômica, de
caracter coletivo, com crimes contra o patrimônio que possuem  um

enfoque voltado para o indivíduo, nos moldes do Direito Penal

Clássico;

O chamado Direito Penal, não está superado, tampouco será
substituído por um novo Direito Penal, hierarquicamente superior.

Tanto o Direito Penal Econômico, quanto o clássico, possuem seu

âmbito de importância e pertinência suficientemente delineados;

Levando-se em conta que o Brasil amolda-se ao modelo capitalista, é

extreme de dúvidas que a criminalização das empresas não pode ficar

à margem da legislação brasileira, e na realidade não fica.

É recomendável que a legislação brasileira, que não possui um
capítulo sobre os crimes contra a ordem econômica, empreenda

esforços no sentido de alocar as condutas lesivas a ordem

econômicas (que necessitam de tutela penal), na parte especial do

Código Penal. Dentre os motivos que justificariam esta assertiva, se

pode destacar a facilidade que o exegeta encontraria ao manusear

uma legislação mais uniforme, com capítulo dedicado a matéria

específica;

Outro fator importante é que a reunião destas normas em um capítulo
específico (de preferência no próprio Código Penal), possibilita uma

diminuição da impunidade dos responsáveis pelos entes jurídicos que

venham a praticar condutas criminosas contra a ordem econômica;

A criminalidade das empresas, além de recomendável, está em
consonância com os modernos postulados da Criminologia e

conforme a melhor orientação político criminal, outro motivo, mais do

que suficiente, para uma ampla reforma legislativa, tendente a criação

de um capítulo específico na parte especial do Código Penal ou, não

sendo possível, a promulgação de uma lei extraordinária mais

eficiente, que reúna os chamados crimes contra a ordem econômica

em um único, ou mais abrangente, instrumento legislativo.

 

8 – BIBLIOGRAFIA

 

ARAÚJO JR., João Marcello de. Dos crimes contra a ordem econômica, São Pulo: Revistas

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WIERNER, Imre. Outline to the general report for the socialist countries. Revue

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Esteban Righi, Derecho penal economico comparado, p. 7.

Idem, p. 8.

Cf. João Marcello de Araújo Jr .. Dos contra a ordem econômica, p. 2/3.

Cf. Rodrigo Sanchez Rios. Reflexões sobre o delito econômico e a sua delimitação, p. 432.

Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade. Problemática  Geral das Infrações Contra a Economia
Nacional, p.65.

Idem, p.66.

Cf. Ela Wiecko V. de Castilho, o controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional, p. 61.

O objeto da chamada “Criminologia Clássica” limitava-se ao delinquente e as condutas definidas em lei como crime, este limite ampliou-se para abranger também a vítima e o controle social, culminando na observação da cifra negra da criminalidade e de condutas não abrangidas pelo Direito Penal, etc. Cf. Luiz Flavio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina, Criminologia, p. 59-107.

Cf. Ela Wiecko V. de Castilho, op. cit., p. 62.

Cf. Ela Wiecko V. de Castilho, op. cit., p. 63.

Cf. Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, op. cit., p.67.

Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p.116.

Cf. Raul Peña Cabrera, El bien jurídico en los delitos econômicos, in,  Revista Brasileiras de Ciências Criminais, n. 11, p.35.

Cf. Luiz Regis Prado, Bem jurídico-penal e constituição, p.56.

Idem, p.67.

Idem, ibidem.

Cf. Manoel Pedro Pimentel, Direito penal econômico, p.3.

Idem, p. 4-5.

Op. cit., p. 69-70.

Idem, p. 70-71.

Cf. Ela Wiecko V de Castilho,  op. cit., nota de rodapé nº88, p.116.

La delincuencia económica, p. 234-236

Não se olvidando de que China, Cuba, dentre outros países, ainda adotam o modelo socialista.

Imre Wiener, Outline to the general report for the socialist countries. In, Revue International de Dróit Pénal, v. 54, p.67.

Cf. Miguel Bajó Fernandez, Derecho Penal Económico, p. 63.

Derecho penal Económico, p. 1.

Idem, ibidem.

Op. cit., p. 10.

Posição adotada por Miranda Gallino, Manoel Pedro Pimentel, op. cit., p. 10-11.

Tratado de Derecho Penal, Buenos Aires: Losada tomo I, p. 47.

Cf João Marcelo de Araújo Jr., op. cit. 37-38.

Cf. Luiz Flavio Gomes e Antonio Garcia-Pablos de Molina, op. cit., p. 128-129.

Cf. João Marcello de Araújo Jr., op. cit., p. 42.

Idem, p. 44-45.

Idem, p. 46.

Op. cit., p. 300.

Concepção e princípios do direito penal econômico, inclusive a proteção dos consumidores, no Brasil. In Revista de Direito Penal e criminologia, nº33, p. 79-80.

Não são todos os autores que inserem crimes contra a propriedade industrial na categoria de crime contra a ordem econômica. Neste sentido: Esteban Righi, op. cit., p. 128.

Cf. Ela Wiecko V de Castilho, op. cit., p. 115.

Idem, ibedem.

alidade, termina por legitimar a ampliação de poderes da polícia, da justiça e da política em geral, basicamente: a) redução de complicações legais e introdução de segredos processuais; b) oferece um tema de campanha eficiente para os políticos como por exemplo a melhor política de combate ao crime organizado e a lavagem de dinheiro.

               Esta realidade está a demonstrar que a política oficial de combate a lavagem de dinheiro aproxima-se do simbolismo, como espécie de demonstração de que o Estado realmente se preocupa com um problema preocupante, criando leis penais repressivas, limitando garantias constitucionais, excluindo da discussão o efetivo combate as causas do aumento da criminalidade e não seus efeitos, buscando encobrir a falta de capacidade política na resolução de problemas comunitários, que não pode ser nem compensada, tampouco torna o Estado o garante da lei e da ordem pela via do Direito Penal.

3.
O TIPO PENAL DE LAVAGEM DE DINHEIRO E OS PROBLEMAS DA LEI 9.613/98

Não obstante aos inúmeros discursos existentes sobre o tema, fato é que “a tipificação da lavagem de dinheiro mostra-se fruto, antes de mais nada, de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”23. Tais compromissos são decorrentes da transnacionalidade desse delito, oriundo de atividades das organizações criminosas que se aproveitaram da interligação do sistema econômico-financeiro mundial, fazendo com que uma cooperação internacional pudesse oferecer uma maior eficiência a esta modalidade delitiva.
Assim, conforme leciona Pitombo, “A estratégia internacional focou-se no objetivo de perseguir o produto e o proveito de determinados crimes; em particular o dinheiro obtido pelas organizações criminosas por meio do tráfico ilícito de entorpecentes”24. Afinal a dificuldade causada pela posse do dinheiro em espécie constitui o verdadeiro problema para as organizações criminosas, em razão do espaço físico que ocupam, levantando suspeitas sobre operações de grande valor, surgindo à necessidade de lavá-lo. Tal fato permite a identificação da origem criminosa do montante e de tomar medidas com o intuito de impedir a utilização deste dinheiro25. Desse modo, por meio de diretrizes estabelecidas por convenções internacionais tornava-se imperioso que as nações se comprometessem na criminalização do crime de lavagem de dinheiro, dentro de determinados parâmetros26.

               Seguindo a tendência o legislador brasileiro em 3.mar.1998, o Presidente da República sancionou a lei 9.613/98, publicada no dia seguinte, vigorando o rol de crimes previsto no caput do art. 1°: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo (e seu financiamento, acréscimo em face da lei 10.701); III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o Sistema Financeiro Nacional; VII – praticado por organização criminosa. Pena: reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos e multa”. Acrescidos do inciso VIII, incluído pelo art. 3° da lei 10.467/2002: VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira (art. 337-B, 337-C, 337-D, CP)27.

               Nesta lista de crimes antecedentes, não foram elencados os crimes contra a ordem econômica e tributária, cuja inserção no rol dos crimes de lavagem de dinheiro já é objeto do projeto de lei n° 2500/2003, apresentado em 14.nov.2003 pela Comissão Parlamentar de Inquérito com finalidade de investigar operações no setor de combustíveis, relacionados com a sonegação de tributos, máfia, adulteração e suposta indústria de liminares.

               Este rol taxativo de delitos antecedentes cria um problema peculiar ao aplicador do direito relacionado à subsunção típica a norma – que não se resume as naturais dificuldades trazidas pelos tipos múltiplos alternativos – centrado na questão normativa que impõe a existência de um tipo antecedente, fruto da redação do art. 2°, II, da lei 9.613/98, que dispõe: “o processo e julgamento dos crimes previstos nesta lei. (…) II – independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no art. anterior, ainda que praticados em outro país”.

               Se não causa espécie o fato de se exigir um crime antecedente, ou delito acessório, para a configuração do crime de lavagem de dinheiro pois, “sem a ocorrência do crime anterior, é impossível originar-se o objeto de ação da lavagem de dinheiro e, via de consequência tipifica-la”28, ante a um Direito Penal que se quer garantista, e uma Constituição Federal que dispõe sobre o princípio da presunção de inocência, incomoda a redação do art. 2°, II, da lei 9.613/98, quando pretende desvencilhar a confirmação legal (via sentença) do crime antecedente para a configuração da lavagem de dinheiro.

               Não se pode ignorar simplesmente que a redação da norma exige como elemento objetivo do tipo, para  a configuração da lavagem de dinheiro, a prática de um crime antecedente a conduta principal que se quer punir que é a da lavagem de capitais. Sendo assim, a exclusão do crime inviabiliza a subsunção típica, ainda que o legislador, talvez para encobrir eventual imperfeição da elaboração da norma, consigne que meros indícios dos crimes elencados como antecedentes, permitam a caracterização do delito de lavagem de dinheiro.

               Esta realidade está a indicar que política adotada, pretende dar respaldo legislativo (ainda que inadequado) a evidente gravidade social oriunda da lavagem de dinheiro, contudo os reflexos destes problemas desencadearam uma série de questões graves que, se não observadas, aumentarão a insegurança jurídica, desnorteando, ainda mais, o entendimento jurisprudencial, que tem enveredado por caminhos tortuosos na apreciação do caso concreto, fruto de uma política criminal tendenciosa e mal conduzida que, cada vez mais, traz para o direito positivo uma série de normas que causam verdadeira perplexidade ao operador do direito, conforme se pretende demonstrar no tópico seguinte.

4.EFEITOS DA POLÍTICA CRIMINAL NA LEI DE LAVAGEM DE CAPITAIS

4.1
Inversão do ônus da prova

               Consequência direta de uma política de combate à lavagem de capitais, centrada no uso do Direito Penal como meio supostamente mais eficaz para o sucesso da empreitada, via de consequência, traduz-se em elaboração de normas, visivelmente anti garantistas, e dogmaticamente censuráveis.

               Na linha do raciocínio ora desenvolvido, chama atenção o art. 4°,§ 2° que, quanto à apreensão e seqüestro de bens, teria invertido o ônus da prova, ao dispor que: “(…) O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou sequestrados quando comprovada a licitude de sua origem”.

               Não faltam vozes para elogiar e confirmar o estabelecimento de verdadeira inversão do ônus da prova, que não seria inconstitucional e que teria criado um instrumento necessário para a sistemática da lei como um todo29.

               Mas esta brecha da inversão do ônus da prova, indiscutivelmente prevista na lei, afronta à previsão do art. 5°, LIV, da Constituição Federal, que dispõe: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A política de combate à lavagem de dinheiro librou-se tanto no Direito Penal, que se esqueceu de alguns de seu principais princípios (por exemplo: presunção de inocência e culpabilidade), pretendendo um “processo legal” com inversão do ônus da prova, como pretende impor a lei de lavagem de capitais, que ou bem é fruto da ignorância do legislador sobre os pilares do Direito Penal, ou bem é a demonstração maior de uma política criminal baseada nos movimentos de lei e ordem, tão ao gosto da cultura da América do Norte.

               É claro que – felizmente – quanto ao ônus da prova do crime de lavagem de dinheiro, para prolatação de decreto condenatório, nenhuma alteração nos trouxe a legislação em tela, que permanece com a acusação. Contudo, abriu um perigoso caminho, que tende a ser trilhado nas leis penais extraordinárias.

4.2
O paradoxo das sanções administrativas

               Outro ponto que permite concluir pelo desequilíbrio da lei de lavagem de capitais, pode ser percebido quando se verifica – pelo estabelecimento de regras especiais de processo e outras disposições administrativas – uma pretensa facilitação da investigação de tais práticas, quando impõe a um extenso rol de pessoas jurídicas e físicas a obrigação de desempenhar muitas tarefas burocráticas, que deveriam ser praticadas pelo Estado, impondo o dever de identificação de clientes, conservar registros de operações e transações e comunicar estas à autoridade administrativa competente30.

Conforme disposto no art. 12, da lei 9.613/98, as pessoas elencadas no art. 9°, que deixarem de cumprir as obrigações impostas nos arts. 10 e 11, estão sujeitos as sanções previstas, mediante o devido processo administrativo. Em caso de condenação poderão ser aplicadas (cumulativamente ou não), as seguintes punições: I – advertência; II – multa pecuniária variável de um por cento até o dobro do valor da operação, ou até duzentos por cento do lucro obtido ou que presumivelmente seria obtido pela realização da operação, ou , ainda, multa de até R$ 200.000,00 (duzentos mil reais); III – inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas referidas no art. 9°; IV – cassação da autorização para operação ou funcionamento.
O que a simples leitura das sanções já permite demonstrar é a existência de um impressionante desequilíbrio na disciplina dada ao tratamento das penas pecuniárias quanto à sanção administrativa e penal, posto que a primeira poderá atingir o agente que, embora não tenha praticado um ilícito penal, pela previsão do § 2° do art. 12 da lei dos crimes de lavagem31, será punido de forma muito mais severa do que o criminoso32. A questão é que, no caso concreto, será possível que “o réu lavador venha a ser condenado judicialmente a pagar ínfima pena de multa, ao passo que ao agente financeiro se aplique, por decisão administrativa, pena pecuniária de grande valor”33.

               Se, a princípio, já se pode questionar a inaplicabilidade de sanção administrativa mais grave, do que a própria sanção penal, em face do princípio da proporcionalidade, também se pode questionar a política adotada, que se mostra – como se demonstrou – desequilibrada e, flagrantemente, opressora, propiciando interpretações que não adotem o raciocínio ora desenvolvido, o que, certamente, resultará em enorme injustiça.

4.3
Delação premiada

               Aqui resta, mais uma vez, lamentar a postura adotada pelo legislador brasileiro que nada mais fez do que admitir a máxima de que os fins justificam os meios.

Ao invés de adotar medidas preventivas verdadeiramente eficazes, priorizando um direito penal muito mais voltado para a prevenção do que a repressão, e que se volta à retribuição do infrator, optou o legislador pátrio em trazer para seu lado o próprio criminoso, sob a alcunha de “réu colaborador”. A questão é que, se de forma consciente ou não, a lei brasileira reconheceu o valor (ainda que provavelmente remoto) de figuras que ficaram famosas, justamente, por entrarem para a história da humanidade pela porta dos fundos como, por exemplo: o apostolo Judas Iscariotes (o traidor de Jesus Cristo), Domingo Fernandes Calabar (que durante a época da invasão dos holandeses no nordeste, passou para o lado holandes em 1632), Joaquim Silvério dos Reis (que denunciou a organização de
uma conspiração que desejava transformar a Capitania de Minas Gerais em um estado livre, liderada por Joaquim Jose da Silva Xavier, o herói nacional Tiradentes, enforcado graças ao traidor), etc.. Se, de fato, não cabe o questionamento moral da opção do legislador brasileiro, do ponto de vista da análise da política adotada ante ao combate a lavagem de dinheiro, resta observar que ficou devidamente consignado em nosso direito positivo, o reconhecimento do fracasso da política criminal adotada para o enfrentamento da criminalidade contemporânea.

               Se lamentar é o que resta, tendo em vista que nada obsta que o Ministério Público se reúna com o criminoso (ou criminosos), compactuando – ainda que na busca de uma maior aplicação da lei penal – com o próprio inimigo da sociedade organizada, pior seria admitir a delação premiada como elemento de prova, em face da evidente realidade de que sempre estará revestido de parcialidade, mas esta é uma questão que não é o enfoque deste trabalho e necessita um maior aprofundamento.

               Por outro lado, não se torna imperativo um estudo pormenorizado para perceber os reflexos negativos que surgirão no uso da delação premiada, sendo o que mais atemoriza a possibilidade da produção de uma prova, sem o crivo do contraditório. Pior: trazer para dentro do processo um elemento (delação) evidentemente parcial, no mínimo tendencioso, eis que beneficia diretamente o infrator, deixando a possibilidade de formar uma convicção do julgador equivocada que, se bem trabalhada, poderá imputar a responsabilidade ao terceiro(s) inocente. Quem ousaria pensar o contrário?

4.4
Reflexos na jurisprudência pátria

               As consequências preocupantes a que nos referimos, da política adotada para o combate a lavagem de dinheiro, já se pode sentir nos Tribunais pátrios que vão fixando alguns entendimentos preocupantes.

               Exemplo desta realidade pode ser facilmente percebida da leitura de alguns acórdãos, que vêm reconhecendo, dentre outros, que o impacto social causado pelo delito, periculosidade do agente, complexidade do delito, magnitude da lesão (figuras não previstas em lei como elemento das modalidades de prisão cautelar) servem como justificativa ao decreto da prisão preventiva34.

Da mesma forma, é possível observar o uso infundado do termo crime organizado em diversos acórdãos35, aparentemente, com o intuito de demonstrar a gravidade do fato julgado, sem que a lei penal pátria tenha criado tal modalidade delitiva,
bem como a doutrina já tenha assinalado a impropriedade absoluta do termo36, já previsto no ordenamento jurídico brasileiro no art. 288 do Código Penal37.

               A questão que precisa ficar muito bem esclarecida é que não existe a norma penal pertinente a figura do crime organizado, sendo sua utilização fruto da absorção de uma política criminal que começa a fazer – preocupante – eco em nossos Tribunais.

                Embora o assunto conceitual já tenha sido tratado no item 2 do presente, faz-se mister consignar que a expressão “crime organizado” possui forte apelo popular e que, segundo Zaffaroni38 é impulsionada pelos próprios delinqüentes, que apareceriam como indivíduos poderosos e dignos de admiração. Certo é que, pior do que esta realidade, é perceber que os efeitos políticos da adoção do termo resultaram em justificativa para que regimes totalitários justificassem ações ditatoriais, como já se pode sentir no posicionamento da jurisprudência, que vem firmando o entendimento de que, na fase do inquérito policial, não vigoram os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, negando acesso aos autos ao advogado constituído.

               Lamentável que os Tribunais brasileiros creditem (ainda que não explicitamente), o não acesso da defesa aos autos do inquérito policial, a uma melhor apuração das provas que constarão no processo criminal. Muito pelo contrário!

               É forçoso reconhecer, ante aos conhecidos abusos e excessos cometidos em sede policial, que a presença do advogado (e portanto o exercício da ampla defesa, negado pela jurisprudência em sede investigativa) só faria referendar a prova produzida, não se podendo compreender a postura dos Tribunais pátrios, a não ser que se conclua que foram, definitivamente, afetados pela política adotada ao combate a lavagem de dinheiro, centrada no uso abusivo do Direito Penal, não se podendo calar ante a uma postura, evidentemente, contrária a Constituição Federal, erigida com base nos princípios garantistas.

               Não bastasse ignorar a necessidade, e a legitimidade, da presença da defesa (em especial acesso aos autos para não permitir – inclusive – a formação de prova falsa) em sede de inquérito, solidificou-se perigoso precedente jurisprudencial39, que autoriza o recebimento de denúncia, nos casos de crimes de autoria coletiva, sem a descrição da conduta de cada agente, absurdo já ressaltado em artigo que bem resume a hipótese, da lavra do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho40, onde se demonstra o risco em que se colocou o Poder Judiciário, ao relaxar em seu mister – imprescindível – de garante da Constituição.
Não cabe nestas reflexões analisar os reflexos dogmáticos dos efeitos que a jurisprudência já acusa estar sofrendo, pois não é o cerne da questão analisada, mas não se poderia deixar de consignar quão preocupante é constatar que, ao relativizar a interpretação do texto legal: permitindo a decretação da prisão cautelar calcada no resultado do delito, e não nos elementos contidos na norma legal, ou seja: no art. 312 do Código de Processo Penal; admitindo denúncia genérica nos crimes de autoria coletiva, a revelia do texto inscrito no art. 41 do Código de Processo Penal, ao negar em sede de inquérito o princípio da ampla defesa, previsto no art. 5°, LV, da Constituição Federal, deixa o Poder Judiciário de exercer a sua função de guardião da lei para assinalar que, a política adotada – na prática – tem o condão de tornar letra morta as garantias constitucionais, que não passariam de fato, de mera retórica41, não restando outra alternativa senão concluir que se constituem, somente, de mera aparência, que não traz nem segurança jurídica, nem segurança política.

 

Crimes contra a ordem econômica

Crimes contra a ordem econômica

1 – INTRODUÇÃO

 

* COMO CITAR ESTE ARTIGO: BITTAR, Walter Barbosa. Crimes contra a ordem econômica, www.advocaciabittar.adv.br.

Quando se pretende abordar tema tão recente para ciência do direito

(em especial da dogmátia penal), como a responsabilidade jurídica dos entes morais, não

podemos nos olvidar – sob pena de perder o intuito da abordagem da matéria – que o

chamado “Direito Penal Clássico”, foi concebido como a forma mais enérgica de proteção

aos bens jurídicos, reservado somente aos  interesses mais relevantes do homens, tais

como: vida, integridade, liberdade, igualdade, seguridade, propriedade , ou seja, bens-

jurídicos individuais.

Assim, os bens jurídicos supra-individuais, há época do chamado “Direito

Penal Clássico”, eram limitados – não deixando espaço para desenvolvimento de um Direito

Penal Econômico – posto que não era missão do Estado intervir na vida econômica e,

portanto, uma legislação erigida sob tal realidade não poderia tratar da proteção jurídico-

penal de outro bem jurídico que não fosse individual, comprometendo a tutela jurídico-penal

de ilítos praticados por empresas.

 

Embora os ordenamentos jurídicos continuem a proteger o indivíduo, tal

valoração foi realçada por interesses sociais, que preponderam sobre o individual em

sentido estrito. Desse modo, o Direito Penal do Estado Democrático de Direito busca romper

com a ideologia que tende a privilegiar os interesses das classes hegemônicas e a imunizá-

las do processo criminalizador. Interesses que estão ligados ao processo de acumulação

 

capitalista, que orienta a repressão penal contra os comportamentos desviados, próprios das

classes sociais mais débeis .

Na seleção dos bens-jurídicos a serem tutelados e selecionados pela lei,

deve-se levar em cinta a inserção – cada vez maior – do homem na vida econômica. Desta

realidade, exsurge mais um bem jurídico a requerer tutela, de caráter coletivo, ou seja: a

ordem econômica. Porém, deve-se ter presente que a questão da criminalidade econômica –

restrita à esfera individual no Direito Penal Clássico – não é uma novidade para o direito,

pois sempre esteve atrelada ao desenvolvimento econômico.

Mas, com a intervenção do Estado na atividade econômica, “para assumir

a sua função de Estado ‘Dirigente’, fez-se necessária a criminalização de condutas que até

então eram imprevisíveis” .

Iniciam-se assim alguns tópicos que trazem a tona inúmeras discussões

doutrinárias, culminando em um falta de consenso nas abordagem da matéria ordem

econômica, tais como definição conceitual e efetiva necessidade de tutela jurídico-penal do

referido bem jurídico.

A partir destes dois polêmicos tópicos é que se pretende desenvolver o

presente trabalho, com especial relevo a questão dogmática-penal e o conceito de

criminalidade econômica, sem olvidar o tratamento destinado ao tema no Brasil.

 

 

 

 

2 – CRIMINALIDADE ECONÔMICA (PROBLEMÁTICA DO DIREITO PENAL

ECONÔMICO)

 

De destacada atualizada no âmbito político, quer pela sua capacidade de

mutação social e política, aptidão para criar defesa contra seus inimigos, “a criminalidade

econômica é uma ameaça séria a minar os alicerces de qualquer sociedade organizada. Daí

que a invenção de formas eficazes de luta seja hoje preocupação das instâncias

governamentais, judiciais, policiais etc., de todos os países” .

Observa-se hoje nos países capitalistas uma grande mobilização de

recursos visando a prevenção e repressão desta modalidade criminosa, ao qual corresponde

uma necessária readaptação legislativa e o necessário reaparelhamento dos agentes do

controle social formal, com vistas a permitir uma resposta aos desafios criados pelo

chamado “Direito Penal Econômico”, que se caracteriza, em especial, pela sua sofisticação e

inteligência.

Urge assim, a necessidade de uma definição sobre o que seja Direito

Penal Econômico, sua delimitação no ordenamento jurídico, surgindo, desse modo, as

primeiras dificuldades de um tema distante de resolução pacífica.

 

 

Faz-se relevante observar que a natureza da definição conceitual de

criminalidade econômica depende do enfoque a ser realizado, ou seja, se criminológico ou

normativo .
Ainda que resumidamente podemos afirmar, quanto ao enfoque

criminológico, que a orientação da criminologia moderna abrange também todas as condutas

consideradas desviadas, o que bem pode  demonstrar a ampliação do objeto da criminologia

moderna e os conseqüentes desdobramento no estudo do tema vertente.

Partindo-se do trabalho de Sutherland sobre o white collar crime (ou crime

do colarinho branco), construindo com base em caso de violação da lei antitruste americana,

que levou em conta não somente condutas tipificadas na lei penal, como outras que também

causavam dano a sociedade, mas que estava em outras leis , a expressão white collar crime

tornou-se uma espécie de sinônimo de criminalidade econômica. Porém cabe alertar que “o

conceito de crime de colarinho branco pertence ao enfoque criminológico e que o conceito

original de Sutherland foi retomado, ampliado e aplicado por diferentes autores a casos que

ele não previra. Por isso, em qualquer discussão há que previamente estabelecer o conceito

operacional da expressão” .

No que tange ao presente trabalho, por enquanto, resta esclarecer que o

chamado “crime do colarinho branco” está inserido na categoria dos crimes econômicos,

servindo para ilustrar o conteúdo e limites do Direito Penal Econômico.

Noutra vertente, deve-se observar o conceito de criminalidade no plano

normativo – se é que tal é possível – tendo em vista que a doutrina, nas últimas décadas,

tem empreendido enormes esforços, para esta determinação, sendo modesto os resultados

conseguidos .

Desse modo, tomando-se como ponto inicial do enfoque normativo a

importância do binômio bem jurídico tutelado e Direito Penal, como um importante critério de

distinção sobre o que seja a chamada criminalidade econômica, vale resgatar a concisa de

lição Nilo Batista de que, “a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através

da cominação, aplicação e execução da pena. Numa sociedade divididas em classes, o

direito penal estará protegendo relações sociais (ou ‘interesses’, ou ‘estados sociais’, ou

‘valores’) escolhidos pela classe dominante, ainda que aparentem certa universalidade, e

contribuindo para reprodução dessas relações” .

Os autores são uníssonos quanto a importância do bem jurídico na teoria

do delito. Entretanto, há divergências quanto ao critério de delimitação dos limites puníveis

mas que, não impedem uma conceituação do que venha a ser o bem jurídico-penal.

Para uma melhor noção do bem jurídico deve-se observar que esta

“implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação

social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano” e que – dentre outras –

“o legislador ordinário deve sempre ter em conta as diretrizes contidas na Constituição e os

 

 

 

valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, em razão do caráter limitativo da

tutela penal” . Donde conclui-se que todo o conceito que seja prioritário ou não para ser

jurídico-penalmente tutelado, está consubstanciado na Constituição, que absorve os bens

jurídicos selecionados, não criando valores, mas se limitando a proclamá-los, dando-lhes

especial tratamento jurídico .

Pois bem, ante estas assertivas resta necessário reconhecer que se

inserem no contexto de garantia do Estado de Direito democrático e social brasileiro a ordem

econômica, e esta, justamente por pertencer à esfera dos chamados bens jurídicos,

observando-se que o conteúdo econômico do bem jurídico não se restringe a uma

concepção patrimonial individual, cedendo espaço a uma concepção econômica

supraindividual, compreende a necessidade de atuação do Direito Penal que não se pode

furtar da tutela deste bem jurídico, utilizando-se para tanto de seus agentes formais de

controle social.

 

3 – NOTÍCIA HISTÓRICA

 

A partir da invenção da moeda, tem-se o marco do crescimento da

circulação da riqueza, o que incrementou o consuma da produção que vinha crescendo .

Destarte, a mente humana e sua infinita criação voltaram-se para a criação de novos tipos

de fraudes, para atacar o patrimônio alheio.

 

Tal realidade não passou despercebida pela Criminologia que indicava o

crescimento desta modalidade de criminalidade mais apurada, que se desenvolveu,

paralelamente, ao crescimento da economia e da complexidade de vida moderna .

Porém, segundo Jorge de Figueiredo Dias, foi a partir da 1º Guerra

Mundial que se teve início a história do Direito Penal Econômico, quando – em decorrência

dos fatos da Guerra – obrigou-se o Estado à assumir o papel de responsável pelo curso da

vida econômica, fazendo com que se separassem o direito, a economia, o Estado e a

sociedade. Mais: “criaram-se, por outro lado, os pressuposto do recurso ao direito penal

(econômico) como meio preferencial de defesa do modelo econômico querido pelo

Estado” .

Adverte ainda Figueiredo Dias que, inobstante tal ilação, anteriormente já

se conheciam casos de direito penal econômico, localizando-se na história fases em que

punições drásticas eram aplicadas em face da especulação, violação de normas sobre

exportação de certos bens, etc. .

Por outro lado, em que pesem as assertivas deste eminente jurista

português, para um melhor entendimento da situação histórica da criminalidade econômica,

deve-se ter presente que no enfoque da macrocriminalidade dado por este autor, há que se

ressaltar a existência de um divisor da águas entre a macrocriminalidade e a micro, quando

se considera a década de 20, a princípio nos Estados Unidos e após, progressivamente, na

Europa e na América Latina, o pós 1º Guerra Mundial, e suas conseqüências (dentre elas

socioeconômia), que propiciaram as condições favoráveis da criminalidade em grande

escala .

Outra esfera relevante é a de saber, se a criminalidade econômica, por

sua natureza e perfil característico, se restringe aos países capitalistas ou se podem

também imiscuir-se nos países socialistas. Para Viladás Jené esta é uma questão

fundamental.
Embora com a queda do muro de Berlim e as constantes mudanças

assistidas pelo mundo – quanto as transformações sofridas no leste europeu – o que se

verificava nos chamados países socialistas é que os crimes contra a ordem econômica,

podiam ser divididos em três categorias: 1) interesses financeiros do Estado; 2) controle

estatal da produção e do consumo; 3) administração da propriedade coletiva . Nos países

capitalistas tem-se – dentre outros – a concorrência desleal de posição dominante no

mercado, espionagem industrial,  já no sistema socialista tem-se a corrupção, falsidades,

mercado negro e atentados aos planos econômicos ou normas de produção.

Esta realidade política bem demostra o problema  da unidade conceitual

do Direito Penal Econômico e seu caráter histórico e evolutivo, tendo-se presente que suas

instituições, problemas e soluções, passam necessariamente por questões históricas e

políticas de cada país.

 

4 – DEFINIÇÃO DE DIREITO PENAL ECONÔMICO

 

Como não podia deixar de ser, em se tratando de tema sobre o qual não

existe um pensamento equânime, o conceito de direito penal econômico não é pacífico.

 

José León Pagano , citando a lição de Aflalión admite ser inútil o intento

de estabelecer, aprioristicamente, as fronteiras dos fatos puníveis ante o foro penal

econômico, sob o argumento de ser uma matéria autônoma, desprendida da enciclopédia

jurídica, além da imprecisão de seus limites, que se disseminam “como el horizonte en las

horas crepusculares” .

Manoel Pedro Pimentel, embora reconhecendo a dissonância doutrinária,

define-se Direito penal econômico como “o conjunto de normas que tem por objeto

sancionar, com as penas que lhe são próprias, as condutas que, no âmbito das relações

econômicas, ofendam ou ponham em perigo bens ou interesses juridicamente relevantes .

Há também autores que não conceituam propriamente o Direito penal

econômico, mas afirmam que o direito penal não protege ou tutela a realização do fenômeno

econômico como fato em si, senão que protege a integridade da ordem, que se estima

necessário para o cumprimento desse fato, de maneira que possam produzir-se assim os

fins proposto. Resultando assim claro que qualquer conduta que produza a ruptura desta

ordem taz como conseqüência uma necessária sanção .

Jiménez de Asúa, por sua vez, não apresenta uma definição textual,

porém, assevera que “en los países de regimen autoritario, e incluso en aquellos de

economia ‘dirigida ‘ o ‘encauzada’ por el Estado, á surgido la idea de reunir todos los

preceptos penales que a esse objetivo se refieren, bajo el titulo de Derecho penal

económico, formado – en el sentir de Siegert – en parte por princípios especiales y en parte

por disposiciones de Derecho penal común” .

Em que pesem todas estas definições, e ainda de todos aqueles que já se

manifestaram sobre a questão da definição desta modalidade delitiva, certo é que a doutrina

reconhece que nas relações econômicas existem dois bens jurídicos fundamentais: o

patrimônio individual e a ordem econômica, esta última de caráter evidentemente supra-

individual , daí se observa que o conceito tanto poderá ser restrito quanto amplo.

Entretanto, com fins de possibilitar mensurar o tem, facilitando seu e sistematização, deve-

se ter presente que o patrimônio individual, precisa continuar sendo resguardado pela lei

pena, por meio dos crimes tradicionais, iminentemente ligados a defesa das pessoas.

Assim, chega-se a conclusão de que, em se tratando de danos que são

causados (ou possam ser) à comunidade, de forma ampla, resta importante destacar a

existência, sim, de crimes contra a ordem econômica, que merecem a máxima reprovação e

necessitam de tutela específica e legislação própria, tudo em face do caráter

multidisciplinar e policrômico desta modalidade de ilícito, conforme já consignado.

As particularidades desta modalidade delitiva (crime contra a ordem

econômica), prestam-se suficiente para diferenciá-las dos delitos do chamado Direito Penal

Clássico, a própria conduta lesiva ao bem jurídico serve para evidenciar o que ora

consignamos.
Por último, resta importante esclarecer que os citados crimes tradicionais

(estelionato, fraudes, contrabando, etc.) são também uma modalidade de delito econômico,

mas – em nosso entendimento – não se inserem dentre os chamados crimes contra a ordem

econômica de, repita-se, característica supra-individual.
5 – NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICO-PENAL DOS CRIMES CONTRA

A ORDEM ECONÔMICA

 

 

Não bastassem as dissonâncias existentes da própria definição do Direito

penal econômico, a moderna Criminologia aponta como a natural evolução do direito penal o

seu uso racional, diminuindo o seu campo de atuação, buscando o chamado Direito penal

mínimo, bem como ampliando seu “rol” de conseqüências jurídico-penais das condutas

ilícitas , sendo necessário observar a pertinência, ou não, do uso de sanção tão drástica

quanto a penal, como forma de manutenção do controle social.

Por outro lado, não se pode deixar de revelar, nesta abordagem, os

princípios político-criminais e criminológicos básicos, que possam orientar as ilações

surgidas e que regem a matéria, bem como as propostas de política-criminal que se

apresentam.

Nesta seara tem-se – necessariamente – que se fazer referência ao

movimento da Defesa Social de Fillipo Gramática, rebatizado de Nova Defesa Social,

baseado no livro de Marc Ancel La défense sociale nouvelle .

Esta seria na verdade mais do que um programa técnico de modificações

regulamentares, seria um estado de espirito, baseado nas novas necessidades ético-social,

possuindo três características fundamentais: 1) é um movimento, não uma doutrina, tem

caráter multidisciplinar e antidogmático; 2) suas concepções são variáveis, justamente por

ser um movimento prático, com fins de promover a reforma das instituições jurídico-penais e

 

da estrutura social; 3) está acima de peculiaridades regionais, tendo visão pluridimensional

do fenômeno crime .

Dentre seus postulados, destacamos a diretriz de promover a

criminalização das novas e graves infrações contra a economia, os direitos difusos e os

interesses coletivos, sem que, entretanto, se permita o uso do ‘terrorismo’ penal” .

Surge assim, um importante questionamento sobre a não proliferação

deste “terrorismo” penal já mencionado, eis eis que a banalização da criminalidade das

condutas que lesem a economia, certamente, conduziram a um desequilíbrio do

ordenamento jurídico, calcado no exagero.

O ponto nevrálgico desta discussão reside em torno da distinção entre

delito e infração contra a ordem econômica, fator primordial para não se permitir uma

“inflação” de conseqüências jurídico-penais, decorrente da falta de compreensão dos limites

destas duas modalidades de ilícito.

Assim, recorrendo ao magistério de Esteban Right , temos que a opinião

dominante na doutrina penal é que a distinção entre o delito e a infração administrativa

somente encontra sentido m uma diferença simplesmente quantitativa, não carecendo estas

de significação ético-social, distinguindo-se dos delitos exclusivamente em uma graduação

do juízo de desvalor. A menor entidade da sanção administrativa em relação a pena criminal

é conseqüência da menor importância do bem jurídico protegido, mas não de sua

inexistência.

Desse modo, permitimo-nos afirmar, que a importância do bem jurídico

 

(referência já assinalada anteriormente) será definitiva para se demostrar a necessidade, ou

não, da tutela penal bem como – e o mais importante – também apresenta relevância a

política-criminal vigente, que norteará a elaboração das normas: se penais, administrativas

ou ambas.

Decisivo portanto, assinalar que uma política-criminal transparente é

imprescindível para a correta seleção das condutas que serão tuteladas pelo Direito penal, já

que a criminalização de condutas lesivas a economia não é nenhuma novidade para as

legislações contemporâneas.

 

6 – DIREITO PENAL ECONÔMICO NO BRASIL

 

O atual código penal brasileiro não dedicou nenhum capítulo especial

destinado aos delitos econômicos. Valendo-se da observação de Nilo Batista quanto a

parte especial de nosso Código Penal de 1940, onde não havia título que reunisse

incriminações que pudessem ter a rubrica de crimes econômicos, é extreme de dúvidas que

alguns dispositivos de nosso atual Código podem ser classificados como integrantes de

Direito Penal Econômico. Antes de mencioná-los, entretanto, no que tange aos crimes contra

a propriedade industrial – modalidade de crime contra a ordem econômica – vale anotar

que estes estavam previstos no título III, capítulo II, III e IV do Código Penal brasileiro, mas

foram revogados pela lei 9.279, de 14.maio.96 e passaram a constar em lei especial.

Feita essa observação, tem-se como exemplos de crimes contra a ordem econômica em nosso atual Código Penal, o art. 172 (duplicata simulada); o art. 175 (fraude no comércio); o art. 177 (das fraudes e abusos na função ou administração de sociedade por ações),os arts. 272, 273, 274 e 279, (adulteração ou falsificação de substâncias alimentícias ou medicinais, da fabricação de produtos com violação de disposições de legislação sanitária, ou da venda ou manutenção em depósitos de substâncias alimentícia ou medicinal avariada).
Na verdade, a maior parte das normas de direito penal econômico no

ordenamento jurídico brasileiro, não estão codificadas, mas sim contidas em leis especiais, o

que significa que temos uma verdadeira “colcha de retalhos”, haja vista que, conforme a

necessidade, por meio de leis esparsas, o legislador terminou por criar leis fragmentárias

possibilitando uma perda de eficiência, problema que se poderia evitar (ou pelo menos

minimizar) com a inserção de um capítulo próprio dos crimes a ordem econômica no Código

Penal, facilitando o trabalho do exegeta.

Esta “lista” de leis especiais, que versam sobre Direito Penal Econômico,

atualmente, estaria assim formada:

Decreto-lei nº 7.661, de 21.jun.45, arts. 186 a 199 (crimes falimentares);
Lei 4.728, de 14.jul.65;
Decreto-lei nº73, de 21.nov.66, art.110;
Lei 4.595, de 31.dez.64, art.44, I, § 7º, art. 44, § 7º;
Lei 1.521, de 26.dez.51 (crimes contra a economia popular);
Lei 4.729, de 14.jul.65, revogada tacitamente pela lei 8.137, de
27.dez.90 (crime de sonegação fiscal);

Decreto-lei nº 16, de 10.ago.66;
Decreto-lei nº 47, de 18.nov.66;
Lei 4.591, 16.dez.64;
Lei5.741, de 1.dez.71, art. 9;]
Lei 6.453, de 17.out.77,art.19 a 27;
Lei 6.649, de 16.maio.79 (revogada pela lei 8.245, de 18.out.91,
definindo contravenções e crimes nos arts. 43 e 44);

Lei 6.766, de 19.dez.79,arts. 50 a 52;
Lei 7.492, de 16.jun.86 (crimes do colarinho branco);
Lei 7.646, de 18.dez.87;
Lei 8.078, de 11.set.90, arts. 63 a 78 (Crimes contra o consumidor);
Lei 8.176, de 8.fev.91 (Define crimes contra a ordem econômica);
Lei 8.212, de 24.jul.91 e Lei ;
Lei 9.605, de 12.fev.98, arts.29 a 69 (crimes contra o meio ambiente);
Lei 9.609, de 19.fev.98, art.12;
Lei 9.613, de 3.mar.98 (Lavagem de dinheiro);
Lei 9.983, de 17.jul.000;
Lei 10.028/00 (Crime de responsabilidade fiscal).
Cabe observar que a lei 9.983/00 que instituiu o crime de sonegação de

contribuição previdenciária, trouxe para a parte especial do Código Penal esta modalidade

de crime contra o ordem econômica, que estava em lei special porém, ainda fora de um

capítulo especial pertinente aos delitos econômicos, podendo indicar a existência de uma

tendência futura a fim de reunir o rol de crimes contra a ordem econômica na parte especial

do Código Penal.

Todavia, não nos parece que, a curto prazo, nosso diploma repressivo

penal,  venha a possuir um capítulo especial destinado aos crimes a ordem econômica,

embora exista de fato uma preocupação em estabelecer uma classificação, ainda que não

existam critérios definidos na legislação brasileira, “sendo impossível extrair um conceito

jurídico consistente de criminalidade econômica “ .

Esta indefinição pode resultar a favor da impunidade , em face de

fomentar discussões dogmáticas, pertinentes a jurisdição, concurso de normas, etc.,

dificultando à aplicação da lei.

Por último, cabe ressaltar que a técnica legislativa necessita ser

aprimorada, tendo em vista que a correta descrição da conduta injusta, é uma necessidade

decorrente do próprio princípio da reserva legal, ainda que reconhecidas as dificuldades

próprias de tão fluída modalidade delitiva como a dos crimes a ordem econômica.

 

7 – NOTAS CONCLUSIVAS

 

Os chamados crimes contra a ordem econômica são melhor
delineados em face de sua característica principal da tutela de bens

jurídico-penais de natureza supra individual;

Não há que se confundir crimes contra a ordem econômica, de
caracter coletivo, com crimes contra o patrimônio que possuem  um

enfoque voltado para o indivíduo, nos moldes do Direito Penal

Clássico;

O chamado Direito Penal, não está superado, tampouco será
substituído por um novo Direito Penal, hierarquicamente superior.

Tanto o Direito Penal Econômico, quanto o clássico, possuem seu

âmbito de importância e pertinência suficientemente delineados;

Levando-se em conta que o Brasil amolda-se ao modelo capitalista, é

extreme de dúvidas que a criminalização das empresas não pode ficar

à margem da legislação brasileira, e na realidade não fica.

É recomendável que a legislação brasileira, que não possui um
capítulo sobre os crimes contra a ordem econômica, empreenda

esforços no sentido de alocar as condutas lesivas a ordem

econômicas (que necessitam de tutela penal), na parte especial do

Código Penal. Dentre os motivos que justificariam esta assertiva, se

pode destacar a facilidade que o exegeta encontraria ao manusear

uma legislação mais uniforme, com capítulo dedicado a matéria

específica;

Outro fator importante é que a reunião destas normas em um capítulo
específico (de preferência no próprio Código Penal), possibilita uma

diminuição da impunidade dos responsáveis pelos entes jurídicos que

venham a praticar condutas criminosas contra a ordem econômica;

A criminalidade das empresas, além de recomendável, está em
consonância com os modernos postulados da Criminologia e

conforme a melhor orientação político criminal, outro motivo, mais do

que suficiente, para uma ampla reforma legislativa, tendente a criação

de um capítulo específico na parte especial do Código Penal ou, não

sendo possível, a promulgação de uma lei extraordinária mais

eficiente, que reúna os chamados crimes contra a ordem econômica

em um único, ou mais abrangente, instrumento legislativo.

 

8 – BIBLIOGRAFIA

 

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Esteban Righi, Derecho penal economico comparado, p. 7.

Idem, p. 8.

Cf. João Marcello de Araújo Jr .. Dos contra a ordem econômica, p. 2/3.

Cf. Rodrigo Sanchez Rios. Reflexões sobre o delito econômico e a sua delimitação, p. 432.

Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade. Problemática  Geral das Infrações Contra a Economia
Nacional, p.65.

Idem, p.66.

Cf. Ela Wiecko V. de Castilho, o controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional, p. 61.

O objeto da chamada “Criminologia Clássica” limitava-se ao delinquente e as condutas definidas em lei como crime, este limite ampliou-se para abranger também a vítima e o controle social, culminando na observação da cifra negra da criminalidade e de condutas não abrangidas pelo Direito Penal, etc. Cf. Luiz Flavio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina, Criminologia, p. 59-107.

Cf. Ela Wiecko V. de Castilho, op. cit., p. 62.

Cf. Ela Wiecko V. de Castilho, op. cit., p. 63.

Cf. Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, op. cit., p.67.

Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p.116.

Cf. Raul Peña Cabrera, El bien jurídico en los delitos econômicos, in,  Revista Brasileiras de Ciências Criminais, n. 11, p.35.

Cf. Luiz Regis Prado, Bem jurídico-penal e constituição, p.56.

Idem, p.67.

Idem, ibidem.

Cf. Manoel Pedro Pimentel, Direito penal econômico, p.3.

Idem, p. 4-5.

Op. cit., p. 69-70.

Idem, p. 70-71.

Cf. Ela Wiecko V de Castilho,  op. cit., nota de rodapé nº88, p.116.

La delincuencia económica, p. 234-236

Não se olvidando de que China, Cuba, dentre outros países, ainda adotam o modelo socialista.

Imre Wiener, Outline to the general report for the socialist countries. In, Revue International de Dróit Pénal, v. 54, p.67.

Cf. Miguel Bajó Fernandez, Derecho Penal Económico, p. 63.

Derecho penal Económico, p. 1.

Idem, ibidem.

Op. cit., p. 10.

Posição adotada por Miranda Gallino, Manoel Pedro Pimentel, op. cit., p. 10-11.

Tratado de Derecho Penal, Buenos Aires: Losada tomo I, p. 47.

Cf João Marcelo de Araújo Jr., op. cit. 37-38.

Cf. Luiz Flavio Gomes e Antonio Garcia-Pablos de Molina, op. cit., p. 128-129.

Cf. João Marcello de Araújo Jr., op. cit., p. 42.

Idem, p. 44-45.

Idem, p. 46.

Op. cit., p. 300.

Concepção e princípios do direito penal econômico, inclusive a proteção dos consumidores, no Brasil. In Revista de Direito Penal e criminologia, nº33, p. 79-80.

Não são todos os autores que inserem crimes contra a propriedade industrial na categoria de crime contra a ordem econômica. Neste sentido: Esteban Righi, op. cit., p. 128.

Cf. Ela Wiecko V de Castilho, op. cit., p. 115.

Idem, ibedem.

alidade, termina por legitimar a ampliação de poderes da polícia, da justiça e da política em geral, basicamente: a) redução de complicações legais e introdução de segredos processuais; b) oferece um tema de campanha eficiente para os políticos como por exemplo a melhor política de combate ao crime organizado e a lavagem de dinheiro.

               Esta realidade está a demonstrar que a política oficial de combate a lavagem de dinheiro aproxima-se do simbolismo, como espécie de demonstração de que o Estado realmente se preocupa com um problema preocupante, criando leis penais repressivas, limitando garantias constitucionais, excluindo da discussão o efetivo combate as causas do aumento da criminalidade e não seus efeitos, buscando encobrir a falta de capacidade política na resolução de problemas comunitários, que não pode ser nem compensada, tampouco torna o Estado o garante da lei e da ordem pela via do Direito Penal.

3.
O TIPO PENAL DE LAVAGEM DE DINHEIRO E OS PROBLEMAS DA LEI 9.613/98

Não obstante aos inúmeros discursos existentes sobre o tema, fato é que “a tipificação da lavagem de dinheiro mostra-se fruto, antes de mais nada, de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”23. Tais compromissos são decorrentes da transnacionalidade desse delito, oriundo de atividades das organizações criminosas que se aproveitaram da interligação do sistema econômico-financeiro mundial, fazendo com que uma cooperação internacional pudesse oferecer uma maior eficiência a esta modalidade delitiva.
Assim, conforme leciona Pitombo, “A estratégia internacional focou-se no objetivo de perseguir o produto e o proveito de determinados crimes; em particular o dinheiro obtido pelas organizações criminosas por meio do tráfico ilícito de entorpecentes”24. Afinal a dificuldade causada pela posse do dinheiro em espécie constitui o verdadeiro problema para as organizações criminosas, em razão do espaço físico que ocupam, levantando suspeitas sobre operações de grande valor, surgindo à necessidade de lavá-lo. Tal fato permite a identificação da origem criminosa do montante e de tomar medidas com o intuito de impedir a utilização deste dinheiro25. Desse modo, por meio de diretrizes estabelecidas por convenções internacionais tornava-se imperioso que as nações se comprometessem na criminalização do crime de lavagem de dinheiro, dentro de determinados parâmetros26.

               Seguindo a tendência o legislador brasileiro em 3.mar.1998, o Presidente da República sancionou a lei 9.613/98, publicada no dia seguinte, vigorando o rol de crimes previsto no caput do art. 1°: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo (e seu financiamento, acréscimo em face da lei 10.701); III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o Sistema Financeiro Nacional; VII – praticado por organização criminosa. Pena: reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos e multa”. Acrescidos do inciso VIII, incluído pelo art. 3° da lei 10.467/2002: VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira (art. 337-B, 337-C, 337-D, CP)27.

               Nesta lista de crimes antecedentes, não foram elencados os crimes contra a ordem econômica e tributária, cuja inserção no rol dos crimes de lavagem de dinheiro já é objeto do projeto de lei n° 2500/2003, apresentado em 14.nov.2003 pela Comissão Parlamentar de Inquérito com finalidade de investigar operações no setor de combustíveis, relacionados com a sonegação de tributos, máfia, adulteração e suposta indústria de liminares.

               Este rol taxativo de delitos antecedentes cria um problema peculiar ao aplicador do direito relacionado à subsunção típica a norma – que não se resume as naturais dificuldades trazidas pelos tipos múltiplos alternativos – centrado na questão normativa que impõe a existência de um tipo antecedente, fruto da redação do art. 2°, II, da lei 9.613/98, que dispõe: “o processo e julgamento dos crimes previstos nesta lei. (…) II – independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no art. anterior, ainda que praticados em outro país”.

               Se não causa espécie o fato de se exigir um crime antecedente, ou delito acessório, para a configuração do crime de lavagem de dinheiro pois, “sem a ocorrência do crime anterior, é impossível originar-se o objeto de ação da lavagem de dinheiro e, via de consequência tipifica-la”28, ante a um Direito Penal que se quer garantista, e uma Constituição Federal que dispõe sobre o princípio da presunção de inocência, incomoda a redação do art. 2°, II, da lei 9.613/98, quando pretende desvencilhar a confirmação legal (via sentença) do crime antecedente para a configuração da lavagem de dinheiro.

               Não se pode ignorar simplesmente que a redação da norma exige como elemento objetivo do tipo, para  a configuração da lavagem de dinheiro, a prática de um crime antecedente a conduta principal que se quer punir que é a da lavagem de capitais. Sendo assim, a exclusão do crime inviabiliza a subsunção típica, ainda que o legislador, talvez para encobrir eventual imperfeição da elaboração da norma, consigne que meros indícios dos crimes elencados como antecedentes, permitam a caracterização do delito de lavagem de dinheiro.

               Esta realidade está a indicar que política adotada, pretende dar respaldo legislativo (ainda que inadequado) a evidente gravidade social oriunda da lavagem de dinheiro, contudo os reflexos destes problemas desencadearam uma série de questões graves que, se não observadas, aumentarão a insegurança jurídica, desnorteando, ainda mais, o entendimento jurisprudencial, que tem enveredado por caminhos tortuosos na apreciação do caso concreto, fruto de uma política criminal tendenciosa e mal conduzida que, cada vez mais, traz para o direito positivo uma série de normas que causam verdadeira perplexidade ao operador do direito, conforme se pretende demonstrar no tópico seguinte.

4.EFEITOS DA POLÍTICA CRIMINAL NA LEI DE LAVAGEM DE CAPITAIS

4.1
Inversão do ônus da prova

               Consequência direta de uma política de combate à lavagem de capitais, centrada no uso do Direito Penal como meio supostamente mais eficaz para o sucesso da empreitada, via de consequência, traduz-se em elaboração de normas, visivelmente anti garantistas, e dogmaticamente censuráveis.

               Na linha do raciocínio ora desenvolvido, chama atenção o art. 4°,§ 2° que, quanto à apreensão e seqüestro de bens, teria invertido o ônus da prova, ao dispor que: “(…) O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou sequestrados quando comprovada a licitude de sua origem”.

               Não faltam vozes para elogiar e confirmar o estabelecimento de verdadeira inversão do ônus da prova, que não seria inconstitucional e que teria criado um instrumento necessário para a sistemática da lei como um todo29.

               Mas esta brecha da inversão do ônus da prova, indiscutivelmente prevista na lei, afronta à previsão do art. 5°, LIV, da Constituição Federal, que dispõe: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A política de combate à lavagem de dinheiro librou-se tanto no Direito Penal, que se esqueceu de alguns de seu principais princípios (por exemplo: presunção de inocência e culpabilidade), pretendendo um “processo legal” com inversão do ônus da prova, como pretende impor a lei de lavagem de capitais, que ou bem é fruto da ignorância do legislador sobre os pilares do Direito Penal, ou bem é a demonstração maior de uma política criminal baseada nos movimentos de lei e ordem, tão ao gosto da cultura da América do Norte.

               É claro que – felizmente – quanto ao ônus da prova do crime de lavagem de dinheiro, para prolatação de decreto condenatório, nenhuma alteração nos trouxe a legislação em tela, que permanece com a acusação. Contudo, abriu um perigoso caminho, que tende a ser trilhado nas leis penais extraordinárias.

4.2
O paradoxo das sanções administrativas

               Outro ponto que permite concluir pelo desequilíbrio da lei de lavagem de capitais, pode ser percebido quando se verifica – pelo estabelecimento de regras especiais de processo e outras disposições administrativas – uma pretensa facilitação da investigação de tais práticas, quando impõe a um extenso rol de pessoas jurídicas e físicas a obrigação de desempenhar muitas tarefas burocráticas, que deveriam ser praticadas pelo Estado, impondo o dever de identificação de clientes, conservar registros de operações e transações e comunicar estas à autoridade administrativa competente30.

Conforme disposto no art. 12, da lei 9.613/98, as pessoas elencadas no art. 9°, que deixarem de cumprir as obrigações impostas nos arts. 10 e 11, estão sujeitos as sanções previstas, mediante o devido processo administrativo. Em caso de condenação poderão ser aplicadas (cumulativamente ou não), as seguintes punições: I – advertência; II – multa pecuniária variável de um por cento até o dobro do valor da operação, ou até duzentos por cento do lucro obtido ou que presumivelmente seria obtido pela realização da operação, ou , ainda, multa de até R$ 200.000,00 (duzentos mil reais); III – inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas referidas no art. 9°; IV – cassação da autorização para operação ou funcionamento.
O que a simples leitura das sanções já permite demonstrar é a existência de um impressionante desequilíbrio na disciplina dada ao tratamento das penas pecuniárias quanto à sanção administrativa e penal, posto que a primeira poderá atingir o agente que, embora não tenha praticado um ilícito penal, pela previsão do § 2° do art. 12 da lei dos crimes de lavagem31, será punido de forma muito mais severa do que o criminoso32. A questão é que, no caso concreto, será possível que “o réu lavador venha a ser condenado judicialmente a pagar ínfima pena de multa, ao passo que ao agente financeiro se aplique, por decisão administrativa, pena pecuniária de grande valor”33.

               Se, a princípio, já se pode questionar a inaplicabilidade de sanção administrativa mais grave, do que a própria sanção penal, em face do princípio da proporcionalidade, também se pode questionar a política adotada, que se mostra – como se demonstrou – desequilibrada e, flagrantemente, opressora, propiciando interpretações que não adotem o raciocínio ora desenvolvido, o que, certamente, resultará em enorme injustiça.

4.3
Delação premiada

               Aqui resta, mais uma vez, lamentar a postura adotada pelo legislador brasileiro que nada mais fez do que admitir a máxima de que os fins justificam os meios.

Ao invés de adotar medidas preventivas verdadeiramente eficazes, priorizando um direito penal muito mais voltado para a prevenção do que a repressão, e que se volta à retribuição do infrator, optou o legislador pátrio em trazer para seu lado o próprio criminoso, sob a alcunha de “réu colaborador”. A questão é que, se de forma consciente ou não, a lei brasileira reconheceu o valor (ainda que provavelmente remoto) de figuras que ficaram famosas, justamente, por entrarem para a história da humanidade pela porta dos fundos como, por exemplo: o apostolo Judas Iscariotes (o traidor de Jesus Cristo), Domingo Fernandes Calabar (que durante a época da invasão dos holandeses no nordeste, passou para o lado holandes em 1632), Joaquim Silvério dos Reis (que denunciou a organização de
uma conspiração que desejava transformar a Capitania de Minas Gerais em um estado livre, liderada por Joaquim Jose da Silva Xavier, o herói nacional Tiradentes, enforcado graças ao traidor), etc.. Se, de fato, não cabe o questionamento moral da opção do legislador brasileiro, do ponto de vista da análise da política adotada ante ao combate a lavagem de dinheiro, resta observar que ficou devidamente consignado em nosso direito positivo, o reconhecimento do fracasso da política criminal adotada para o enfrentamento da criminalidade contemporânea.

               Se lamentar é o que resta, tendo em vista que nada obsta que o Ministério Público se reúna com o criminoso (ou criminosos), compactuando – ainda que na busca de uma maior aplicação da lei penal – com o próprio inimigo da sociedade organizada, pior seria admitir a delação premiada como elemento de prova, em face da evidente realidade de que sempre estará revestido de parcialidade, mas esta é uma questão que não é o enfoque deste trabalho e necessita um maior aprofundamento.

               Por outro lado, não se torna imperativo um estudo pormenorizado para perceber os reflexos negativos que surgirão no uso da delação premiada, sendo o que mais atemoriza a possibilidade da produção de uma prova, sem o crivo do contraditório. Pior: trazer para dentro do processo um elemento (delação) evidentemente parcial, no mínimo tendencioso, eis que beneficia diretamente o infrator, deixando a possibilidade de formar uma convicção do julgador equivocada que, se bem trabalhada, poderá imputar a responsabilidade ao terceiro(s) inocente. Quem ousaria pensar o contrário?

4.4
Reflexos na jurisprudência pátria

               As consequências preocupantes a que nos referimos, da política adotada para o combate a lavagem de dinheiro, já se pode sentir nos Tribunais pátrios que vão fixando alguns entendimentos preocupantes.

               Exemplo desta realidade pode ser facilmente percebida da leitura de alguns acórdãos, que vêm reconhecendo, dentre outros, que o impacto social causado pelo delito, periculosidade do agente, complexidade do delito, magnitude da lesão (figuras não previstas em lei como elemento das modalidades de prisão cautelar) servem como justificativa ao decreto da prisão preventiva34.

Da mesma forma, é possível observar o uso infundado do termo crime organizado em diversos acórdãos35, aparentemente, com o intuito de demonstrar a gravidade do fato julgado, sem que a lei penal pátria tenha criado tal modalidade delitiva,
bem como a doutrina já tenha assinalado a impropriedade absoluta do termo36, já previsto no ordenamento jurídico brasileiro no art. 288 do Código Penal37.

               A questão que precisa ficar muito bem esclarecida é que não existe a norma penal pertinente a figura do crime organizado, sendo sua utilização fruto da absorção de uma política criminal que começa a fazer – preocupante – eco em nossos Tribunais.

                Embora o assunto conceitual já tenha sido tratado no item 2 do presente, faz-se mister consignar que a expressão “crime organizado” possui forte apelo popular e que, segundo Zaffaroni38 é impulsionada pelos próprios delinqüentes, que apareceriam como indivíduos poderosos e dignos de admiração. Certo é que, pior do que esta realidade, é perceber que os efeitos políticos da adoção do termo resultaram em justificativa para que regimes totalitários justificassem ações ditatoriais, como já se pode sentir no posicionamento da jurisprudência, que vem firmando o entendimento de que, na fase do inquérito policial, não vigoram os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, negando acesso aos autos ao advogado constituído.

               Lamentável que os Tribunais brasileiros creditem (ainda que não explicitamente), o não acesso da defesa aos autos do inquérito policial, a uma melhor apuração das provas que constarão no processo criminal. Muito pelo contrário!

               É forçoso reconhecer, ante aos conhecidos abusos e excessos cometidos em sede policial, que a presença do advogado (e portanto o exercício da ampla defesa, negado pela jurisprudência em sede investigativa) só faria referendar a prova produzida, não se podendo compreender a postura dos Tribunais pátrios, a não ser que se conclua que foram, definitivamente, afetados pela política adotada ao combate a lavagem de dinheiro, centrada no uso abusivo do Direito Penal, não se podendo calar ante a uma postura, evidentemente, contrária a Constituição Federal, erigida com base nos princípios garantistas.

               Não bastasse ignorar a necessidade, e a legitimidade, da presença da defesa (em especial acesso aos autos para não permitir – inclusive – a formação de prova falsa) em sede de inquérito, solidificou-se perigoso precedente jurisprudencial39, que autoriza o recebimento de denúncia, nos casos de crimes de autoria coletiva, sem a descrição da conduta de cada agente, absurdo já ressaltado em artigo que bem resume a hipótese, da lavra do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho40, onde se demonstra o risco em que se colocou o Poder Judiciário, ao relaxar em seu mister – imprescindível – de garante da Constituição.
Não cabe nestas reflexões analisar os reflexos dogmáticos dos efeitos que a jurisprudência já acusa estar sofrendo, pois não é o cerne da questão analisada, mas não se poderia deixar de consignar quão preocupante é constatar que, ao relativizar a interpretação do texto legal: permitindo a decretação da prisão cautelar calcada no resultado do delito, e não nos elementos contidos na norma legal, ou seja: no art. 312 do Código de Processo Penal; admitindo denúncia genérica nos crimes de autoria coletiva, a revelia do texto inscrito no art. 41 do Código de Processo Penal, ao negar em sede de inquérito o princípio da ampla defesa, previsto no art. 5°, LV, da Constituição Federal, deixa o Poder Judiciário de exercer a sua função de guardião da lei para assinalar que, a política adotada – na prática – tem o condão de tornar letra morta as garantias constitucionais, que não passariam de fato, de mera retórica41, não restando outra alternativa senão concluir que se constituem, somente, de mera aparência, que não traz nem segurança jurídica, nem segurança política.

 

A Politica Oficial de Combate a Lavagem de Dinheiro

A Política Oficial de Combate a Lavagem de Dinheiro

“A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir”(…) “Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra, a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal” (Rudolf Von Ihering. A luta pelo direito, trad. João de Vasconcelos, 6a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 1)

1.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

               Quando se busca analisar a política de que se vale o Estado no combate a tão intrigante problema da sociedade contemporânea, frustra concluir, com pouco esforço de observação, que esta se limitou em atender pressões externas e Tratados Internacionais assinados pelo Brasil, cuja raiz centra-se na questão dos crimes oriundos do narcotráfico e os temores surgidos a partir de tal constatação2 . Estas obrigações internacionais contraídas pela adesão a estes Tratados, resultou no uso abusivo do Direito Penal como fórmula máxima da prevenção da preocupante conduta da lavagem de capitais, pouco fazendo o Estado para investir contra tal prática em outras áreas.

               Tal conclusão libra-se na certeza de que pouco se fez, desde a assinatura dos Tratados referidos, nas ações de combate a lavagem de dinheiro, além do uso desmedido e perigoso de leis penais extraordinárias, que primam pela violação dos princípios garantistas, conquistados ao custo do sangue e luta de muitos (anônimos ou não), que sempre primaram por um direito voltado para o subjetivismo e para a proteção dos direitos fundamentais das pessoas, em detrimento das intervenções punitivas e exacerbadas do Estado3 .

Faz-se mister esclarecer que o tema em análise necessita ser abordado tanto sob o prisma da Criminologia, como do Direito Penal, que por vezes serão enfocados conjuntamente, eis que a questão da lavagem de dinheiro, atrelada ao equivocado conceito de crime organizado, possibilita tal apreciação sob ambos os focos, sendo necessário advertir o leitor sob a forma de elaboração do texto em apreço.
Importante também esclarecer que não se ignora a necessidade do uso do Direito Penal como forma de prevenção e repressão ao combate à lavagem de dinheiro, pois ainda que não seja plausível precisar com exatidão a definição do bem jurídico tutelado, pois é possível encontrar as mais diversas posições quanto a este, como por exemplo: “normalidade do sistema econômico-financeiro de um país”4 ou “a própria ordem socioeconômica”5 , é fato inconteste que não se pode deixar de reconhecer a existência de uma pluralidade ofensiva na atividade criminosa destinada a reciclar capitais ilícitos, atingidos pelas mais diversas formas de criminalidade direcionada à lavagem de dinheiro6 , atividade que reclama a tutela penal.

               A questão é policrômica, fruto de uma realidade criminológica contemporânea “bastante distinta da que serviu de base para a construção dos tipos penais tradicionais”, realidade esta que é fruto de uma complexa criminalidade que se insurge contra a ordem econômica, que merece uma regulamentação penal mais específica e abrangente, que se distancia da chamada criminalidade tradicional7.

               Contudo, tal realidade não pode autorizar a supressão de garantias constitucionais, quer na elaboração do tipo, quer na inversão tácita de princípios esculpidos na Constituição Federal, que estão sendo sumariamente ignorados pelo legislador e pior: encontrando guarida na jurisprudência pátria que, sob o argumento do “impacto social causado pelo delito”8, está dando início a um processo de desvio dos conceitos originais e fundamentadores da intervenção punitiva, “para adotar conceitos desestruturados e anômalos, que modulam o chamado direito simbólico ou retórico”9, fruto direto da política utilizada na busca do combate a esta modalidade de ilícito.

2.
O COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
2.1
Ligação com a lavagem de dinheiro

É preciso sempre, em face do já mencionado caráter policrômico do fenômeno, ter presente que crime organizado e lavagem de dinheiro são temas interligados, tornando necessário que, para a compreensão do segundo, se recomende em um primeiro momento à delimitação do que se compreende como crime organizado e das questões a ele relacionadas10.
Em um primeiro plano deve-se ter presente que crime organizado não é prática organizada de delitos, “pois tem como dado característico a duração, o que o aproxima da idéia de instituição”11. Por outro lado, no crime organizado, percebe-se a existência de pessoas das mais diversas camadas sociais, desempenhando tarefas distintas, aproximando-se também da idéia de empresa, na medida em que surge como um verdadeiro negócio com intuito de lucro, em determinado setor econômico ou território. Assim, são explorados em regra “a proteção, o jogo de azar, as drogas, venda de armas, prostituição, pornografia, agiotagem”12, ou seja tudo o que é lucrativo e de origem ilícita.

               Nesta sentido, resta oportuno observar a advertência de Juarez Cirino dos Santos quanto à existência de dois pólos de discursos distintos sobre o crime organizado, um americano definido como conspiração nacional de etnias estrangeiras, e o discurso italiano que tem por objeto o estudo original da máfia siciliana. O estudo desses discursos pode contribuir para desfazer o mito do crime organizado, difundido, reduzindo os efeitos danosos deste conceito sobre os princípios de política criminal do Estado democrático de direito13. Assim, partindo-se deste enfoque, forçoso observar os postulados da criminologia no enfrentamento do problema e suas conclusões que não estão sendo recepcionadas pela política de combate a lavagem de dinheiro.

2.2
O problema dos discursos do poder

A expressão crime organizado (organized crime) foi cunhada pela criminologia americana para determinar um feixe de fenômenos criminais pouco definidos, atribuídos a empresas do mercado ilícito, criado pela lei seca (Volstead act, 1920). Tal discurso, originário das instituições de controle social, nasceu com o objetivo de estigmatizar grupos sócias étnicos (italianos), pois o comportamento criminoso não seria uma característica da comunidade americana mas sim de um submundo constituído por estrangeiros, criando teorias criminológicas fundadas na noção de subcultura e desorganização social, seria uma conspiração contra o povo americano promovida por organizações ligadas a grupos étnicos estrangeiros. Este conceito explorado politicamente para difundir pelos meios de comunicação de massa para justificar campanhas de lei e ordem, muito eficazes como estratégia eleitoreira de candidatos. Extinto o mercado oriundo da criminalização do álcool o perigo do crime organizado foi deslocado para o tráfico de drogas, novo mercado ilícito com lucros fabulosos oriundo da criminalização das drogas, promovido mundialmente pelo governo americano, sob o mesmo paradigma da conspiração contra o american way of life14.
Este conceito, seria, na análise de Juarez Cirino dos Santos, “do ponto de vista da realidade, um mito; do ponto de vista da ciência, uma categoria sem conteúdo; e do ponto de vista prático, um rótulo desnecessário”15. Mito porque estudos sérios demonstraram que, sem negar a óbvia existência de bandos e quadrilhas nos EUA, mostraram na verdade a desorganização das famílias mafiosas, ao contrário dos bilhões de dólares provenientes da atividade ilícita, não passariam de pequenos crimes e contravenções menos lucrativos do que qualquer atividade regular. Na verdade o suposto crime organizado não passava de atividades de grupos desarticulados, sem a organização estrutural difundida pela mídia americana. Provas como a do arrependido Tomaso Busceta e outros, seriam contraditórias e não confiáveis, produzidas pelo sensacionalismo jornalístico, e pela necessidade política de bodes expiatórios das culpas sociais16. Acientífico porque buscava abranger uma série de fenômenos diversos como tráfico de drogas, de armas, extorsão, jogo proibido, prostituição – incluindo hoje – lavagem de dinheiro, absolutamente carente de conteúdo jurídico penal. Desnecessário, porque não designaria nada que não estivesse contido no conceito de quadrilha ou bando17.

               Entretanto, não obstante tais conclusões, o conceito de crime organizado americano permite realizar funções políticas específicas, tais como: legitimar a repressão de minorias étnicas, justificando restrições externas à soberania de nações independentes, como a intervenção americana na Colômbia, por exemplo, impondo diretrizes na política criminal local, formuladas para resolver problemas sociais internos dos EUA, em razão de sua irracional política oficial de combate as drogas18.

Quanto ao discurso italiano o prisma modifica-se na medida em que se percebe que o crime organizado é na verdade a atividade da própria Máfia, “uma realidade sociológica, política e cultural secular da Itália meridional”19, que se traduz em associações e estruturas empresariais constituídas para atividades lícitas e ilícitas, que praticariam contrabando, tráfico de drogas, extorsão, assassinato, etc., passíveis de definição como quadrilha ou bando, mas inconfundíveis com o conceito indeterminado de crimine organizzato.20

Originalmente dirigidas à repressão de camponeses em luta contra o latifúndio, as organizações de tipo mafiosos evoluíram para empreendimentos urbanos, atuando na construção civil, contrabando e da extorsão sobre o comércio e a indústria, assumindo, progressivamente, características financeiro-empresariais, “com empresas no mercado legal e a inserção no circuito financeiro internacional para lavagem do dinheiro do tráfico de drogas”21.
Na Itália, existiria uma relação da Máfia com o poder público como troca de bens (um mercado de proteção recíproca): A Máfia garantiria votos com sua capacidade intimidatória, produzindo consenso social e o político garantiria impunidade, contratos, licenças, etc., fazendo com que cargos públicos sejam financiados com dinheiro ilegal.

               Esta característica da Máfia italiana demonstra que o discurso da criminologia italiana busca esclarecer a realidade doméstica do fenômeno mafioso, em seu próprio contexto histórico-cultural, sendo útil para mostrar que organizações de tipo mafioso são “estruturas dotadas de organização empresarial definíveis como quadrilha ou bando”22, sendo um produto que surge do próprio ecossistema social, fazendo com que na esteira do pensamento de Juarez Cirino dos Santos, concluirmos também que não pode simplesmente ser transferido para outros contextos, como por exemplo o Brasil, sem grave distorção conceitual, pois não se conhece, ainda, estudos conclusivos sobre a realidade nacional, limitada a reportagens de cunho jornalístico, desprovida de comprovação científica.

               Contudo, a resposta penal contra o chamado crime organizado é semelhante em todo o mundo, não se encontrando discrepâncias significativas entre a política de combate brasileira e as demais. Essa realidade, termina por legitimar a ampliação de poderes da polícia, da justiça e da política em geral, basicamente: a) redução de complicações legais e introdução de segredos processuais; b) oferece um tema de campanha eficiente para os políticos como por exemplo a melhor política de combate ao crime organizado e a lavagem de dinheiro.

               Esta realidade está a demonstrar que a política oficial de combate a lavagem de dinheiro aproxima-se do simbolismo, como espécie de demonstração de que o Estado realmente se preocupa com um problema preocupante, criando leis penais repressivas, limitando garantias constitucionais, excluindo da discussão o efetivo combate as causas do aumento da criminalidade e não seus efeitos, buscando encobrir a falta de capacidade política na resolução de problemas comunitários, que não pode ser nem compensada, tampouco torna o Estado o garante da lei e da ordem pela via do Direito Penal.

3.
O TIPO PENAL DE LAVAGEM DE DINHEIRO E OS PROBLEMAS DA LEI 9.613/98

Não obstante aos inúmeros discursos existentes sobre o tema, fato é que “a tipificação da lavagem de dinheiro mostra-se fruto, antes de mais nada, de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”23. Tais compromissos são decorrentes da transnacionalidade desse delito, oriundo de atividades das organizações criminosas que se aproveitaram da interligação do sistema econômico-financeiro mundial, fazendo com que uma cooperação internacional pudesse oferecer uma maior eficiência a esta modalidade delitiva.
Assim, conforme leciona Pitombo, “A estratégia internacional focou-se no objetivo de perseguir o produto e o proveito de determinados crimes; em particular o dinheiro obtido pelas organizações criminosas por meio do tráfico ilícito de entorpecentes”24. Afinal a dificuldade causada pela posse do dinheiro em espécie constitui o verdadeiro problema para as organizações criminosas, em razão do espaço físico que ocupam, levantando suspeitas sobre operações de grande valor, surgindo à necessidade de lavá-lo. Tal fato permite a identificação da origem criminosa do montante e de tomar medidas com o intuito de impedir a utilização deste dinheiro25. Desse modo, por meio de diretrizes estabelecidas por convenções internacionais tornava-se imperioso que as nações se comprometessem na criminalização do crime de lavagem de dinheiro, dentro de determinados parâmetros26.

               Seguindo a tendência o legislador brasileiro em 3.mar.1998, o Presidente da República sancionou a lei 9.613/98, publicada no dia seguinte, vigorando o rol de crimes previsto no caput do art. 1°: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo (e seu financiamento, acréscimo em face da lei 10.701); III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o Sistema Financeiro Nacional; VII – praticado por organização criminosa. Pena: reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos e multa”. Acrescidos do inciso VIII, incluído pelo art. 3° da lei 10.467/2002: VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira (art. 337-B, 337-C, 337-D, CP)27.

               Nesta lista de crimes antecedentes, não foram elencados os crimes contra a ordem econômica e tributária, cuja inserção no rol dos crimes de lavagem de dinheiro já é objeto do projeto de lei n° 2500/2003, apresentado em 14.nov.2003 pela Comissão Parlamentar de Inquérito com finalidade de investigar operações no setor de combustíveis, relacionados com a sonegação de tributos, máfia, adulteração e suposta indústria de liminares.

               Este rol taxativo de delitos antecedentes cria um problema peculiar ao aplicador do direito relacionado à subsunção típica a norma – que não se resume as naturais dificuldades trazidas pelos tipos múltiplos alternativos – centrado na questão normativa que impõe a existência de um tipo antecedente, fruto da redação do art. 2°, II, da lei 9.613/98, que dispõe: “o processo e julgamento dos crimes previstos nesta lei. (…) II – independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no art. anterior, ainda que praticados em outro país”.

               Se não causa espécie o fato de se exigir um crime antecedente, ou delito acessório, para a configuração do crime de lavagem de dinheiro pois, “sem a ocorrência do crime anterior, é impossível originar-se o objeto de ação da lavagem de dinheiro e, via de consequência tipifica-la”28, ante a um Direito Penal que se quer garantista, e uma Constituição Federal que dispõe sobre o princípio da presunção de inocência, incomoda a redação do art. 2°, II, da lei 9.613/98, quando pretende desvencilhar a confirmação legal (via sentença) do crime antecedente para a configuração da lavagem de dinheiro.

               Não se pode ignorar simplesmente que a redação da norma exige como elemento objetivo do tipo, para  a configuração da lavagem de dinheiro, a prática de um crime antecedente a conduta principal que se quer punir que é a da lavagem de capitais. Sendo assim, a exclusão do crime inviabiliza a subsunção típica, ainda que o legislador, talvez para encobrir eventual imperfeição da elaboração da norma, consigne que meros indícios dos crimes elencados como antecedentes, permitam a caracterização do delito de lavagem de dinheiro.

               Esta realidade está a indicar que política adotada, pretende dar respaldo legislativo (ainda que inadequado) a evidente gravidade social oriunda da lavagem de dinheiro, contudo os reflexos destes problemas desencadearam uma série de questões graves que, se não observadas, aumentarão a insegurança jurídica, desnorteando, ainda mais, o entendimento jurisprudencial, que tem enveredado por caminhos tortuosos na apreciação do caso concreto, fruto de uma política criminal tendenciosa e mal conduzida que, cada vez mais, traz para o direito positivo uma série de normas que causam verdadeira perplexidade ao operador do direito, conforme se pretende demonstrar no tópico seguinte.

4.EFEITOS DA POLÍTICA CRIMINAL NA LEI DE LAVAGEM DE CAPITAIS

4.1
Inversão do ônus da prova

               Consequência direta de uma política de combate à lavagem de capitais, centrada no uso do Direito Penal como meio supostamente mais eficaz para o sucesso da empreitada, via de consequência, traduz-se em elaboração de normas, visivelmente anti garantistas, e dogmaticamente censuráveis.

               Na linha do raciocínio ora desenvolvido, chama atenção o art. 4°,§ 2° que, quanto à apreensão e seqüestro de bens, teria invertido o ônus da prova, ao dispor que: “(…) O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou sequestrados quando comprovada a licitude de sua origem”.

               Não faltam vozes para elogiar e confirmar o estabelecimento de verdadeira inversão do ônus da prova, que não seria inconstitucional e que teria criado um instrumento necessário para a sistemática da lei como um todo29.

               Mas esta brecha da inversão do ônus da prova, indiscutivelmente prevista na lei, afronta à previsão do art. 5°, LIV, da Constituição Federal, que dispõe: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A política de combate à lavagem de dinheiro librou-se tanto no Direito Penal, que se esqueceu de alguns de seu principais princípios (por exemplo: presunção de inocência e culpabilidade), pretendendo um “processo legal” com inversão do ônus da prova, como pretende impor a lei de lavagem de capitais, que ou bem é fruto da ignorância do legislador sobre os pilares do Direito Penal, ou bem é a demonstração maior de uma política criminal baseada nos movimentos de lei e ordem, tão ao gosto da cultura da América do Norte.

               É claro que – felizmente – quanto ao ônus da prova do crime de lavagem de dinheiro, para prolatação de decreto condenatório, nenhuma alteração nos trouxe a legislação em tela, que permanece com a acusação. Contudo, abriu um perigoso caminho, que tende a ser trilhado nas leis penais extraordinárias.

4.2
O paradoxo das sanções administrativas

               Outro ponto que permite concluir pelo desequilíbrio da lei de lavagem de capitais, pode ser percebido quando se verifica – pelo estabelecimento de regras especiais de processo e outras disposições administrativas – uma pretensa facilitação da investigação de tais práticas, quando impõe a um extenso rol de pessoas jurídicas e físicas a obrigação de desempenhar muitas tarefas burocráticas, que deveriam ser praticadas pelo Estado, impondo o dever de identificação de clientes, conservar registros de operações e transações e comunicar estas à autoridade administrativa competente30.

Conforme disposto no art. 12, da lei 9.613/98, as pessoas elencadas no art. 9°, que deixarem de cumprir as obrigações impostas nos arts. 10 e 11, estão sujeitos as sanções previstas, mediante o devido processo administrativo. Em caso de condenação poderão ser aplicadas (cumulativamente ou não), as seguintes punições: I – advertência; II – multa pecuniária variável de um por cento até o dobro do valor da operação, ou até duzentos por cento do lucro obtido ou que presumivelmente seria obtido pela realização da operação, ou , ainda, multa de até R$ 200.000,00 (duzentos mil reais); III – inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas referidas no art. 9°; IV – cassação da autorização para operação ou funcionamento.
O que a simples leitura das sanções já permite demonstrar é a existência de um impressionante desequilíbrio na disciplina dada ao tratamento das penas pecuniárias quanto à sanção administrativa e penal, posto que a primeira poderá atingir o agente que, embora não tenha praticado um ilícito penal, pela previsão do § 2° do art. 12 da lei dos crimes de lavagem31, será punido de forma muito mais severa do que o criminoso32. A questão é que, no caso concreto, será possível que “o réu lavador venha a ser condenado judicialmente a pagar ínfima pena de multa, ao passo que ao agente financeiro se aplique, por decisão administrativa, pena pecuniária de grande valor”33.

               Se, a princípio, já se pode questionar a inaplicabilidade de sanção administrativa mais grave, do que a própria sanção penal, em face do princípio da proporcionalidade, também se pode questionar a política adotada, que se mostra – como se demonstrou – desequilibrada e, flagrantemente, opressora, propiciando interpretações que não adotem o raciocínio ora desenvolvido, o que, certamente, resultará em enorme injustiça.

4.3
Delação premiada

               Aqui resta, mais uma vez, lamentar a postura adotada pelo legislador brasileiro que nada mais fez do que admitir a máxima de que os fins justificam os meios.

Ao invés de adotar medidas preventivas verdadeiramente eficazes, priorizando um direito penal muito mais voltado para a prevenção do que a repressão, e que se volta à retribuição do infrator, optou o legislador pátrio em trazer para seu lado o próprio criminoso, sob a alcunha de “réu colaborador”. A questão é que, se de forma consciente ou não, a lei brasileira reconheceu o valor (ainda que provavelmente remoto) de figuras que ficaram famosas, justamente, por entrarem para a história da humanidade pela porta dos fundos como, por exemplo: o apostolo Judas Iscariotes (o traidor de Jesus Cristo), Domingo Fernandes Calabar (que durante a época da invasão dos holandeses no nordeste, passou para o lado holandes em 1632), Joaquim Silvério dos Reis (que denunciou a organização de
uma conspiração que desejava transformar a Capitania de Minas Gerais em um estado livre, liderada por Joaquim Jose da Silva Xavier, o herói nacional Tiradentes, enforcado graças ao traidor), etc.. Se, de fato, não cabe o questionamento moral da opção do legislador brasileiro, do ponto de vista da análise da política adotada ante ao combate a lavagem de dinheiro, resta observar que ficou devidamente consignado em nosso direito positivo, o reconhecimento do fracasso da política criminal adotada para o enfrentamento da criminalidade contemporânea.

               Se lamentar é o que resta, tendo em vista que nada obsta que o Ministério Público se reúna com o criminoso (ou criminosos), compactuando – ainda que na busca de uma maior aplicação da lei penal – com o próprio inimigo da sociedade organizada, pior seria admitir a delação premiada como elemento de prova, em face da evidente realidade de que sempre estará revestido de parcialidade, mas esta é uma questão que não é o enfoque deste trabalho e necessita um maior aprofundamento.

               Por outro lado, não se torna imperativo um estudo pormenorizado para perceber os reflexos negativos que surgirão no uso da delação premiada, sendo o que mais atemoriza a possibilidade da produção de uma prova, sem o crivo do contraditório. Pior: trazer para dentro do processo um elemento (delação) evidentemente parcial, no mínimo tendencioso, eis que beneficia diretamente o infrator, deixando a possibilidade de formar uma convicção do julgador equivocada que, se bem trabalhada, poderá imputar a responsabilidade ao terceiro(s) inocente. Quem ousaria pensar o contrário?

4.4
Reflexos na jurisprudência pátria

               As consequências preocupantes a que nos referimos, da política adotada para o combate a lavagem de dinheiro, já se pode sentir nos Tribunais pátrios que vão fixando alguns entendimentos preocupantes.

               Exemplo desta realidade pode ser facilmente percebida da leitura de alguns acórdãos, que vêm reconhecendo, dentre outros, que o impacto social causado pelo delito, periculosidade do agente, complexidade do delito, magnitude da lesão (figuras não previstas em lei como elemento das modalidades de prisão cautelar) servem como justificativa ao decreto da prisão preventiva34.

Da mesma forma, é possível observar o uso infundado do termo crime organizado em diversos acórdãos35, aparentemente, com o intuito de demonstrar a gravidade do fato julgado, sem que a lei penal pátria tenha criado tal modalidade delitiva,
bem como a doutrina já tenha assinalado a impropriedade absoluta do termo36, já previsto no ordenamento jurídico brasileiro no art. 288 do Código Penal37.

               A questão que precisa ficar muito bem esclarecida é que não existe a norma penal pertinente a figura do crime organizado, sendo sua utilização fruto da absorção de uma política criminal que começa a fazer – preocupante – eco em nossos Tribunais.

                Embora o assunto conceitual já tenha sido tratado no item 2 do presente, faz-se mister consignar que a expressão “crime organizado” possui forte apelo popular e que, segundo Zaffaroni38 é impulsionada pelos próprios delinqüentes, que apareceriam como indivíduos poderosos e dignos de admiração. Certo é que, pior do que esta realidade, é perceber que os efeitos políticos da adoção do termo resultaram em justificativa para que regimes totalitários justificassem ações ditatoriais, como já se pode sentir no posicionamento da jurisprudência, que vem firmando o entendimento de que, na fase do inquérito policial, não vigoram os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, negando acesso aos autos ao advogado constituído.

               Lamentável que os Tribunais brasileiros creditem (ainda que não explicitamente), o não acesso da defesa aos autos do inquérito policial, a uma melhor apuração das provas que constarão no processo criminal. Muito pelo contrário!

               É forçoso reconhecer, ante aos conhecidos abusos e excessos cometidos em sede policial, que a presença do advogado (e portanto o exercício da ampla defesa, negado pela jurisprudência em sede investigativa) só faria referendar a prova produzida, não se podendo compreender a postura dos Tribunais pátrios, a não ser que se conclua que foram, definitivamente, afetados pela política adotada ao combate a lavagem de dinheiro, centrada no uso abusivo do Direito Penal, não se podendo calar ante a uma postura, evidentemente, contrária a Constituição Federal, erigida com base nos princípios garantistas.

               Não bastasse ignorar a necessidade, e a legitimidade, da presença da defesa (em especial acesso aos autos para não permitir – inclusive – a formação de prova falsa) em sede de inquérito, solidificou-se perigoso precedente jurisprudencial39, que autoriza o recebimento de denúncia, nos casos de crimes de autoria coletiva, sem a descrição da conduta de cada agente, absurdo já ressaltado em artigo que bem resume a hipótese, da lavra do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho40, onde se demonstra o risco em que se colocou o Poder Judiciário, ao relaxar em seu mister – imprescindível – de garante da Constituição.
Não cabe nestas reflexões analisar os reflexos dogmáticos dos efeitos que a jurisprudência já acusa estar sofrendo, pois não é o cerne da questão analisada, mas não se poderia deixar de consignar quão preocupante é constatar que, ao relativizar a interpretação do texto legal: permitindo a decretação da prisão cautelar calcada no resultado do delito, e não nos elementos contidos na norma legal, ou seja: no art. 312 do Código de Processo Penal; admitindo denúncia genérica nos crimes de autoria coletiva, a revelia do texto inscrito no art. 41 do Código de Processo Penal, ao negar em sede de inquérito o princípio da ampla defesa, previsto no art. 5°, LV, da Constituição Federal, deixa o Poder Judiciário de exercer a sua função de guardião da lei para assinalar que, a política adotada – na prática – tem o condão de tornar letra morta as garantias constitucionais, que não passariam de fato, de mera retórica41, não restando outra alternativa senão concluir que se constituem, somente, de mera aparência, que não traz nem segurança jurídica, nem segurança política.

 

Alterações do CPP quanto ao procedimento do Júri: Confira a entrevista com Walter Barbosa Bittar

Alterações do CPP quanto ao procedimento do Júri: Confira a entrevista com Walter Barbosa Bittar

Assista à entrevista concedida pelo Dr. Walter Barbosa Bittar à TV Tarobá, com relação às recentes alterações do Código de Processo Penal, no que tange ao procedimento dos crimes de competência do Tribunal do Júri:
part II
https://www.youtube.com/watch?v=-Px0W7KP0J0
FONTE: Arquivo Eletrônico e TV Tarobá

 

Os novos procedimentos do Júri: confira a entrevista de Walter Barbosa Bittar à Folha de Londrina

Os novos procedimentos do Júri: confira a entrevista de Walter Barbosa Bittar à Folha de Londrina

A lei 11.689, de 9 de junho de 2008, que entra em vigor no próximo dia 10, chega com a proposta de dar uma maior celeridade aos procedimentos relativos ao Tribunal do Júri, alterando vários itens do Código de Processo Penal (CPP). Cabe ressaltar que só vão a este tribunal os casos de crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados. No mesmo mês, foram sancionadas também a lei 11.690, que trata da suspensão do processo, e da 11.719, sobre a emendatio libelli, mutatio libelli e procedimentos, e essas três juntas vêm sendo chamadas de reforma no CPP.

A lei que trata do Tribunal do Júri tem gerado questionamentos por parte de advogados e juristas principalmente em relação ao artigo 411, que determina uma única audiência de instrução. Isso significa que, em um único dia, o juiz deve tomar as declarações do ofendido (se possível), inquirir as testemunhas da acusação, depois as da defesa (esta ordem não pode ser invertida), fazer as acareações, reconhecimento de pessoas e coisas, esclarecimentos de peritos, interrogar o acusado e realizar um debate oral (substituindo as atuais alegações por escrito), concedendo 20 minutos para a acusação e para a defesa, prorrogáveis por mais 10. Encerrados os debates, o juiz pode proferir a sua decisão ali mesmo, ou o fazer em 10 dias.

Colocada desta forma, a audiência única parece vir resolver o problema de morosidade nesta fase do processo. Mas, na análise dos profissionais ouvidos pela FOLHA, sem a estrutura necessária, essa norma não deve trazer os resultados esperados. ”Dificilmente vamos conseguir realizar tudo em um dia só. Se a testemunha falta, não temos estrutura para mandar buscá-la no meio da audiência. Vamos ter que marcar uma nova data e é isso que a lei não quer”, afirma Elisabeth Khater, juíza da 1 Vara Criminal e presidente do Tribunal do Júri de Londrina.

O advogado Walter Bittar, professor de Direito Penal e Processo Penal e Criminologia na PUC, Escola de Magistratura e na UEL, concorda. Para ele, seria preciso a criação de pelo menos mais uma vara para o Tribunal do Júri na cidade. ”O sistema judiciário não absorve a demanda. É preciso uma estruturação da justiça, investindo em informática, assessoria, número de juízes, promotores, na polícia”, sugere, apontando que, com uma estrutura melhor, haveria maior celeridade mesmo com as leis vigentes hoje.

Ambos os profissionais ressaltam ainda que, na busca pela celeridade, é preciso tomar cuidado para que isso não gere injustiças. ”É preciso ter cautela na busca por celeridade. Não se pode atropelar atos da defesa e da acusação, isso pode trazer prejuízo para ambos. Tem que haver um equilíbrio”, lembra Bittar, complementando que, se houver e for demonstrado o prejuízo a uma das partes, isso pode levar até à nulidade do julgamento.

A falta de estrutura também deve prejudicar o cumprimento do prazo de 90 dias para a conclusão da instrução preliminar. ”Teremos 90 dias para a pronúncia, mas vai ser difícil cumprir. Com isso, as partes ainda podem alegar excesso de prazo”, prevê.

Outro prazo difícil de ser respeitado é o tempo de seis meses, contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia (ao final da instrução preliminar), para o julgamento. Passado esse prazo, a lei prevê a possibilidade de se determinar o desaforamento (transferência do julgamento para outra comarca da mesma região) em razão do excesso de serviço. ”Essa possibilidade não traz vantagens, porque todas as comarcas têm seu número de processos a prazos a cumprir”, avalia a juíza.

Já a determinação de uma hora e meia para a alegação tanto da acusação quanto da defesa diante do Tribunal do Júri, com mais uma hora de réplica (atualmente são duas horas para alegação e 30 minutos para réplica), na avaliação dos entrevistados, só deve fazer diferença caso não haja a réplica. Caso contrário, o tempo total continua sendo de 2h30 para cada.

Bittar admite, porém, que ainda é difícil prever as reais consequências e efeitos dessas mudanças. ”Em princípio a lei traz uma celeridade maior em alguns pontos. Mas por outro lado pode redundar em um maior número de nulidades, tanto para a defesa quanto para a acusação”, analisa.

*Sobre a autora: Adriana Ito – Reportagem Local da Folha de Londrina.

FONTE: Folha de Londrina

 

A abolitio criminis nos delitos contra a ordem econômica da Lei 8.137/1990

A abolitio criminis nos delitos contra a ordem econômica da Lei 8.137/1990

Hoje em dia, as relações humanas são fugazes, surgem e desaparecem sem deixar vestígios. E, nesse ponto, o Direito não pode ignorar essa realidade, sob pena de não cumprir sua função: manter a ordem jurídica. O grande desafio é compatibilizar a realização do interesse público — manutenção da ordem jurídica — com as garantias e os direitos individuais, que têm o fundamental papel de defender os cidadãos contra o Estado.

 

No caso de escutas telefônicas autorizadas por ordem judicial para fins investigatórios, é possível afirmar com segurança que sua realização não é compatível com o exercício prévio do Direito de Defesa, pois, do contrário, elas seriam destituídas de qualquer sentido útil ou prático. Em razão da natureza específica dessa prova, o Direito de Defesa deve ser garantido após o término do período da quebra de sigilo telefônico.

O dever de ser informado posteriormente sobre a quebra do sigilo telefônico é tão fundamental e necessário quanto o regular direito de defesa prévio garantido em outros procedimentos investigatórios.

A atual lei de escutas telefônicas (Lei 9.296, de 24 de julho de 1996), entretanto, silenciou sobre o assunto, apesar desse direito decorrer diretamente da Constituição Federal.

Já o Projeto de Lei do Senado no. 525/2007 prescreve que: “Não havendo requerimento de diligências complementares ou após a realização das que tiverem sido requeridas, o juiz intimará o investigado ou acusado para que se manifeste, fornecendo-lhe cópia identificável do material produzido exclusivamente em relação à sua pessoa”(artigo 12).

O artigo legal garante não só ao investigado, mas a qualquer pessoa que tenha tido seu sigilo telefônico rompido, por ordem judicial, o direito de ser informado da quebra e de apresentar defesa em regular procedimento investigatório, garantido o acesso às transcrições referentes a seus interesses.

O processo investigatório ou inquisitorial não dispensa a observação do princípio do direito à defesa e ao contraditório do investigado, nem pode ser substituído pelo exercício desses direitos na ação penal.

A nova solução proposta, portanto, compatibiliza o interesse público na realização de eficiente investigação com os direitos e garantias individuais dos particulares por ela afetados.

Sem garantia do Direito à Defesa não existe Estado Democrático de Direito. O interesse público não pode justificar nem validar qualquer violação à Constituição Federal.

Pedro Paulo de Rezende Porto Filho é mestre em Direito Constitucional, sócio do escritório Porto Advogados e autor do livro Quebra de Sigilo pelas Comissões Parlamentares de Inquérito.

FONTE: Revista Consultor Jurídico, 10 de janeiro de 2009

 

Algemas: STF disciplina seu uso

Algemas: STF disciplina seu uso

Hoje em dia, as relações humanas são fugazes, surgem e desaparecem sem deixar vestígios. E, nesse ponto, o Direito não pode ignorar essa realidade, sob pena de não cumprir sua função: manter a ordem jurídica. O grande desafio é compatibilizar a realização do interesse público — manutenção da ordem jurídica — com as garantias e os direitos individuais, que têm o fundamental papel de defender os cidadãos contra o Estado.

 

No caso de escutas telefônicas autorizadas por ordem judicial para fins investigatórios, é possível afirmar com segurança que sua realização não é compatível com o exercício prévio do Direito de Defesa, pois, do contrário, elas seriam destituídas de qualquer sentido útil ou prático. Em razão da natureza específica dessa prova, o Direito de Defesa deve ser garantido após o término do período da quebra de sigilo telefônico.

O dever de ser informado posteriormente sobre a quebra do sigilo telefônico é tão fundamental e necessário quanto o regular direito de defesa prévio garantido em outros procedimentos investigatórios.

A atual lei de escutas telefônicas (Lei 9.296, de 24 de julho de 1996), entretanto, silenciou sobre o assunto, apesar desse direito decorrer diretamente da Constituição Federal.

Já o Projeto de Lei do Senado no. 525/2007 prescreve que: “Não havendo requerimento de diligências complementares ou após a realização das que tiverem sido requeridas, o juiz intimará o investigado ou acusado para que se manifeste, fornecendo-lhe cópia identificável do material produzido exclusivamente em relação à sua pessoa”(artigo 12).

O artigo legal garante não só ao investigado, mas a qualquer pessoa que tenha tido seu sigilo telefônico rompido, por ordem judicial, o direito de ser informado da quebra e de apresentar defesa em regular procedimento investigatório, garantido o acesso às transcrições referentes a seus interesses.

O processo investigatório ou inquisitorial não dispensa a observação do princípio do direito à defesa e ao contraditório do investigado, nem pode ser substituído pelo exercício desses direitos na ação penal.

A nova solução proposta, portanto, compatibiliza o interesse público na realização de eficiente investigação com os direitos e garantias individuais dos particulares por ela afetados.

Sem garantia do Direito à Defesa não existe Estado Democrático de Direito. O interesse público não pode justificar nem validar qualquer violação à Constituição Federal.

Pedro Paulo de Rezende Porto Filho é mestre em Direito Constitucional, sócio do escritório Porto Advogados e autor do livro Quebra de Sigilo pelas Comissões Parlamentares de Inquérito.

FONTE: Revista Consultor Jurídico, 10 de janeiro de 2009

 

Interesse público não justifica violação do prévio direito de defesa

Interesse público não justifica violação do prévio direito de defesa

Hoje em dia, as relações humanas são fugazes, surgem e desaparecem sem deixar vestígios. E, nesse ponto, o Direito não pode ignorar essa realidade, sob pena de não cumprir sua função: manter a ordem jurídica. O grande desafio é compatibilizar a realização do interesse público — manutenção da ordem jurídica — com as garantias e os direitos individuais, que têm o fundamental papel de defender os cidadãos contra o Estado.

 

No caso de escutas telefônicas autorizadas por ordem judicial para fins investigatórios, é possível afirmar com segurança que sua realização não é compatível com o exercício prévio do Direito de Defesa, pois, do contrário, elas seriam destituídas de qualquer sentido útil ou prático. Em razão da natureza específica dessa prova, o Direito de Defesa deve ser garantido após o término do período da quebra de sigilo telefônico.

O dever de ser informado posteriormente sobre a quebra do sigilo telefônico é tão fundamental e necessário quanto o regular direito de defesa prévio garantido em outros procedimentos investigatórios.

A atual lei de escutas telefônicas (Lei 9.296, de 24 de julho de 1996), entretanto, silenciou sobre o assunto, apesar desse direito decorrer diretamente da Constituição Federal.

Já o Projeto de Lei do Senado no. 525/2007 prescreve que: “Não havendo requerimento de diligências complementares ou após a realização das que tiverem sido requeridas, o juiz intimará o investigado ou acusado para que se manifeste, fornecendo-lhe cópia identificável do material produzido exclusivamente em relação à sua pessoa”(artigo 12).

O artigo legal garante não só ao investigado, mas a qualquer pessoa que tenha tido seu sigilo telefônico rompido, por ordem judicial, o direito de ser informado da quebra e de apresentar defesa em regular procedimento investigatório, garantido o acesso às transcrições referentes a seus interesses.

O processo investigatório ou inquisitorial não dispensa a observação do princípio do direito à defesa e ao contraditório do investigado, nem pode ser substituído pelo exercício desses direitos na ação penal.

A nova solução proposta, portanto, compatibiliza o interesse público na realização de eficiente investigação com os direitos e garantias individuais dos particulares por ela afetados.

Sem garantia do Direito à Defesa não existe Estado Democrático de Direito. O interesse público não pode justificar nem validar qualquer violação à Constituição Federal.

Pedro Paulo de Rezende Porto Filho é mestre em Direito Constitucional, sócio do escritório Porto Advogados e autor do livro Quebra de Sigilo pelas Comissões Parlamentares de Inquérito.

FONTE: Revista Consultor Jurídico, 10 de janeiro de 2009

 

Mídia e direito penal: em 2009, o populismo pena pode explodir

Mídia e direito penal: em 2009, o populismo pena pode explodir

De todas as possíveis formas de instrumentalização do direito penal (ou seja: de seu uso indevido), duas, desde logo, merecem destaque: a política e a levada a cabo pelos meios de comunicação (instrumentalização “midiática”).

O uso desvirtuado do direito penal vem se acentuando a cada ano: certamente 2009 não será diferente. Com o aumento da violência, pode explodir o “populismo penal” do legislador. Tudo depende do comportamento da mídia, que retrata a violência como um “produto” de mercado. A criminalidade e a persecução penal, assim, não somente possuem valor para uso político (e, especialmente, para uso “do” político), senão que são também objetos de autênticos melodramas cotidianos que são comercializados com textos e ilustrações nos meios de comunicação.

São mercadorias da indústria cultural, gerando, para se falar de efeitos já notados, a banalização da violência e o conseqüente anestesiamento da população, que já não se estarrece com mais nada.

Em inúmeros casos, o legislador, levado pela “urgência” e pelo ineditismo das novas situações, não encontra outra resposta (na verdade, nem sequer busca outra resposta) que não seja a conjuntural (“reação emocional legislativa”), que tende a ser de natureza “penal”, dependendo dos benefícios eleitorais que possa alcançar. Invoca-se o direito penal como instrumento para soluções de problemas, mas se sabe que seu uso recorrente não soluciona coisa alguma. Nisso reside o simbolismo penal.

Vários são os exemplos do que acaba de ser narrado (cf. O Estado de S. Paulo de 18 de maio de 2008, p. C6, matéria assinada por Laura Diniz): a partir de um fato midiático, a mídia pressiona e o Congresso Nacional cede, editando nova lei. Vejamos:

1) no final dos anos 80 e começo dos anos 90, em razão da onda de seqüestros (do empresário Abílio Diniz, de Roberto Medina – irmão de um parlamentar na época, etc.) veio a lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990), que aumentou penas, criou crimes, cortou direitos e garantias fundamentais, etc.;

2) em dezembro de 1992 a atriz Daniela Perez foi assassinada brutalmente pelo casal Guilherme de Pádua e Paula Thomaz. Daniela era filha da escritora Glória Perez, que fez um movimento nacional pró endurecimento da lei dos crimes hediondos. Veio, com isso, a Lei 8.930/1994, que incluiu o homicídio qualificado como crime hediondo;

3) em 1997 a mídia divulgou imagens chocantes de policiais militares agredindo e matando pessoas na Favela Naval, em Diadema (SP); a repercussão imediata foi a edição da lei de tortura (Lei 9.455/1997);

4) em 1998 foi a vez da “pílula falsa” (ganhou notoriedade o caso do anticoncepcional Microvlar, que continha farinha, o que não evitou a gravidez de incontáveis mulheres); esse constitui um exemplo marcante não só de direito penal midiático como, sobretudo, eleitoreiro. O legislador brasileiro, sob os efeitos do “escândalo dos remédios falsos”, não teve dúvida em reagir imediatamente: elaborou primeiro a Lei 9.677/98, para alterar o marco penal de diversas condutas relacionadas com o tema (a falsificação de remédio agora é sancionada, no mínimo, com dez anos de reclusão. Por meio do mesmo diploma legal, outras condutas não tão graves, como a falsificação de creme para alisar o cabelo, passaram a receber a mesma punição). Depois, publicou-se a Lei 9.695/98, para transformar diversos desses delitos em “hediondos” (o que, desde aquela outra lei, já se pretendia, mas que, por defeito de técnica legislativa não se conseguiu). De forma inédita, a lei foi aprovada em 48 horas;

5) em novembro de 2003 a estudante Liana Friedenbach e seu namorado Felipe Caffé foram brutalmente assassinados por um grupo de criminosos, sendo que o chefe da quadrilha era um menor (“Champinha”). O Congresso Nacional se mobilizou rapidamente, incontáveis projetos foram apresentados para ampliar ou tornar mais rígida a internação de menores infratores;

6) em maio de 2006 ocorreram os ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), que assassinaram vários policiais em São Paulo. Logo em seguida o Senado aprovou nove projetos de lei, incluindo-se, dentre eles, o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado Máximo);

7) em fevereiro de 2007 o menor João Hélio Fernandes, de seis anos, foi arrastado e morto, num roubo ocorrido no Rio de Janeiro. Em seguida a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado aprovou proposta de redução da maioridade penal, porque um dos autores do roubo era menor. Esse projeto está pronto para ir ao plenário e só está aguardando (evidentemente) um outro fato midiático;

8) em 2008, para tentar coibir a expansão das milícias no Rio de Janeiro, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que altera vários dispositivos do Código Penal, sem nenhuma chance de efeito prático (até porque, para evitar a impunidade, bastaria cumprir a lei vigente). Foi mais uma “legislação penal de emergência”, ou seja, mais uma inovação legislativa apressada, que foi editada para acalmar os ânimos da população (isto é: “mostrar serviço à sociedade”);

9) ainda em 2008, depois da absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Congresso Nacional aprovou o fim do protesto por novo júri.

O legislador brasileiro atua emergencialmente, mas sempre, claro, contra os “de baixo”. Das 646 propostas legislativas apresentadas de 2003 a 2007, apenas duas versavam sobre o crime do colarinho branco. Todas as demais se relacionavam com a criminalidade das ruas, dos excluídos etc.

O legislador vive sob o comando de uma “perene emergência” (Moccia). Basta um fato escandaloso e a pressão midiática para desencadear a marcha do “populismo punitivo”. Não atua como um juiz, sim, como parte. Raramente se vê no Brasil uma verdadeira indenização em favor da vítima. O que o Poder Político oferece é o “conforto enganoso” de uma nova lei, que é feita comA o cadáver ainda sobre a mesa. Claro que essa lei só pode seguir a lógica do linchamento.A

Em 2009, podem anotar: tudo o que o Congresso Nacional está esperando é a eclosão de mais um delito midiático. Se envolver um menor, embora eles sejam responsáveis no nosso paísA por apenas 1% dos crimes violentos, não há dúvida que os parlamentares vão aprovar a redução da maioridade penal (e vão “vender” isso como solução para o problema da criminalidade violenta do país).

E a população vai se comportar (evidentemente) como aquela mulher, da clássica anedota, que (indigna e aberrantemente) gostava de apanhar. Bate que eu gosto!

Luiz Flávio Gomes

FONTE: Última instânciaQ

er isso todos os dias, por exemplo, no trânsito, mas também em quase todos os setores. Os diálogos exemplificativos são mais ou menos assim: “Isso aqui precisa ser feito”. “Sim, mas há uma lei que diz que não se pode fazer assim”. “Não tem importância. Faz e depois a gente vê”. É o completo desprezo pela legalidade. E não importa o objetivo. Hoje, há muita gente que acha válido passar por cima da lei para pegar supostos criminosos. Não pode. Causou-me perplexidade uma pesquisa feita há alguns anos, na qual os jovens responderam que para progredir na vida valeria tudo, até desrespeitar a lei e tomar atitudes antiéticas. Isso é um desastre. E é nesse caldo de cultura que estamos vivendo, recrutando os juízes.

ConJur — Os fins não justificam os meios…

Peluso — Não. As decisões do Supremo são muito questionadas por isso. Determinadas CPIs têm objetivos extraordinários, então muitos acham que vale tudo para que eles sejam alcançados. Todo mundo está de acordo com os objetivos. Ninguém é favor da corrupção ou de interceptações telefônicas para baixo e para cima. Sou contra tudo isso. Agora, para combater isso é preciso respeitar o ordenamento jurídico. Há outros valores jurídicos envolvidos na questão. Para atingir um objetivo necessário e legítimo, eu não posso admitir que se comprometa um mundo de garantias fundamentais dos cidadãos. Os fenômenos, sobretudo os fenômenos políticos, quando são objeto de decisão do Judiciário, são julgados a partir desse ponto de vista, de que não se pode fazer qualquer coisa a qualquer titulo só porque o escopo final é valido, aceito e todo mundo quer.

ConJur — Houve certos momentos de tensão entre o Judiciário e o Legislativo no ano passado. Um deles foi por causa dos efeitos da fidelidade partidária. Outro foi provocado por uma decisão do senhor, que não permitiu que a CPI das Escutas tivesse acesso a dados telefônicos sigilosos. O senhor foi bastante criticado na ocasião. Como recebe essas críticas?

Peluso — Como manifestação de inconformismo própria da democracia, onde as pessoas, em princípio, falam o que querem. Não posso guiar-me pelo que dizem. Todos nós aqui no Supremo sabemos que, se tomarmos uma decisão em determinado sentido, haverá muitas críticas de pessoas que se sentirão atingidas, prejudicadas, inconformadas. Mas isso não pode guiar nenhum juiz, muito menos um ministro do STF. As decisões do Supremo estão aí para serem respeitadas e, depois, criticadas. Mas, no Brasil, diferentemente de outros lugares do mundo, a crítica é pessoal, não é do teor da decisão. Muitas vezes se critica a pessoa do ministro, não a decisão que ele tomou. Isso é um problema primário de educação e de civilidade, não propriamente de democracia. Há certas críticas que chegam a tipificar crime contra a honra dos juízes.

ConJur — Seria o caso de processar os autores das críticas?

Peluso — Será que valeria a pena que um ministro do Supremo descesse à arena do processo penal para responder a afrontas?

ConJur — O senhor considera que a denúncia contra o ministro Paulo Medina, do STJ, foi o mais importante processo que relatou no ano passado?

Peluso — Eu diria que foi o mais rumoroso, mas não sei se foi o mais importante. É um processo complexo, com quase cem volumes e que versa sobre temas delicados, ligados à magistratura. Mas o Supremo tomou outras decisões que, no plano nacional, foram muito mais importantes. E é preciso ressaltar, sobre esse processo do Medina, que nós apenas recebemos a denúncia. O caso ainda está sendo processado. Não há culpados por enquanto nesse processo.

ConJur — O Supremo fixou alguns precedentes importantes nesse processo, não? Por exemplo, que não é necessária a transcrição integral das escutas telefônicas nos autos e que, se a decisão estiver bem fundamentada, as interceptações podem ser prorrogadas por mais de 30 dias.

Peluso — Sim. São precedentes importantíssimos. O Supremo deixou duas orientações. Primeira: medidas de investigação que implicam, de certo modo, restrição às liberdades pessoais têm de ser tomadas com muita cautela e rigorosamente dentro dos limites legais. Esse é o ponto de vista de resguardo das garantias individuais que a Constituição preserva. A segunda é que o Estado tem de ter certa margem de liberdade para apurar crimes. A criminalidade hoje é muito competente no seu mau ofício. Portanto, o Estado tem que contar com instrumentos de eficácia maior do que aqueles que a criminalidade cria para fugir das regras. Se o Judiciário, sem prejuízo de respeito das liberdades individuais, não permite ao Estado avançar no combate à criminalidade, então fica difícil conviver em sociedade.

ConJur — Por isso se permitiu interceptação telefônica por mais de 30 dias?

Peluso — O Supremo foi comedido. Admitiu interceptação por mais de 30 dias apenas quando haja justificação adequada. Não se pode permitir escuta indefinida, mas também não se pode restringir de modo a torná-la inútil na investigação de organizações criminosas. Um valor fundamental não pode anular o outro. De certo modo, entendo que o Supremo encontrou o equilíbrio entre essas exigências constitucionais.

ConJur — O senhor considera que há exagero no número de interceptações telefônicas?

Peluso — Eu estou perdido quanto aos números. A CPI tem um número, o Conselho Nacional de Justiça fala em outro e eu, pessoalmente, não tenho dados para dizer qual está correto. Agora, se os números da CPI forem aproximadamente verdadeiros, é um descalabro. Isso seria uma revelação terrível do ponto de vista do funcionamento do Estado no seu aparato policial: significaria que já ninguém investiga inteligentemente nada e prefere ficar gravando para ver se surge alguma nas conversas telefônicas.

ConJur — É correto começar investigação a partir de escuta telefônica?

Peluso — A escuta telefônica tem de servir apenas para auxiliar a investigação. Não há o menor propósito nem sentido em começar uma investigação com escutas. As interceptações devem ser usadas quando sejam a única forma de se provar um fato sobre o qual já haja indícios muito fortes. Se há outro meio de provar o delito, não cabe escuta. A Polícia tem de investir em inteligência, até para fortalecer suas investigações. Porque eu posso dizer ao telefone que fiz uma transação ilegal. Isso não prova nada se a Polícia não tenha documentos que mostrem que a transação foi, de fato, feita e é ilegal. Ou seja, temos de reconhecer que as interceptações telefônicas são um instrumento útil de investigação policial, mas que são apenas auxiliares da investigação. Existem muitos outros meios de investigação e de provas que, na maioria dos casos, são suficientes para apurar prática de delitos.

ConJur — É preciso repensar a investigação?

Peluso — Tudo depende da orientação que se dê aos órgãos policiais. Ninguém pode deixar de reconhecer que houve um investimento muito grande na Polícia Federal nos últimos anos e que isso é muito bom. Quando surgiu, a PF era considerada polícia de segunda classe. Hoje, sem dúvida, é a mais bem equipada das instituições policiais, com gente nova, inteligente, preparada, com cursos aqui e no exterior.

ConJur — Nós vivemos em um Estado policialesco?

Peluso — Não. Dizer que vivemos em um Estado Policial é figura de retórica. Todos temos medo de chegar lá, mas hoje não vivemos essa condição. Eu acredito que estamos passando daquela fase de receio, de medo dos excessos policiais. Houve excesso de marketing em certas atividades e operações policiais. Mas, agora, a própria imprensa passou a dar notícias de operações policiais tão frutíferas quanto outras do passado recente, mas sem igual estardalhaço.

ConJur — O senhor considera que o Supremo tem um papel importante nesse quadro?

Peluso — O Supremo teve um peso importante nesse processo. A corte foi ponderada. Não disse que vivemos em um Estado policial. As decisões foram pontuais. Um bom exemplo é o episódio da súmula das algemas. O piloto brasileiro Hélio Castro Neves agora está sendo processado nos Estados Unidos por problemas de impostos. Ele é conhecidíssimo lá, campeão de automobilismo. Noticiaram que foi preso e algemado, não apenas pelas mãos, mas também pelos pés. A pergunta é: para quê? O que os órgãos policiais, o Estado e a sociedade ganharam com isso? Nada. Se ele tinha que ser preso, provavelmente teria acompanhado o policial da captura andando normalmente ao seu lado. O que o Supremo quis reprimir, com aquela súmula vinculante, foi exatamente isso: o excesso ou abuso. A pessoa apresentar-se à Polícia para ser presa não é uma situação em que se justifique o uso de algemas. O STF adotou essa postura para coibir atos extremamente abusivos, que tinham pouco a ver com a segurança dos policiais e das suas operações.

ConJur — Os policiais reclamaram…

Peluso — Fui juiz em São Paulo por mais de 30 anos e não me lembro de nenhum caso em que vieram reclamar de que a Polícia de São Paulo botou algemas em alguém desnecessariamente. Depois que aprovamos a súmula, recebi telefonemas de amigos da Polícia, delegados e investigadores, que me diziam: “Mas, ministro, isso é um absurdo”. E eu respondi: “Gente, continuem fazendo o que sempre fizeram. Algemem o cidadão quando haja necessidade, como sempre foi feito”. Não mudou nada. Só coibimos os abusos.

ConJur — Se a Polícia Federal é polícia judiciária, ela não deveria se subordinar ao Judiciário, e não ao Executivo?

Peluso — No exercício da atividade, sim. Administrativamente, não. A atividade de investigação da polícia judiciária é que deve ficar sob a supervisão do Judiciário. Se a Polícia, enquanto organização, fosse subordinada ao Judiciário, teríamos, entre muitos outros inconvenientes, o problema de separar o juiz que supervisiona a Polícia do juiz que julga a ação penal. As duas coisas não podem, em princípio, ficar nas mesmas mãos. Quem colhe as provas ou supervisiona o inquérito não pode julgar. Eu já ofereci sugestões ao presidente do STF e do CNJ, ministro Gilmar Mendes, para que se adote, por meio do Conselho Nacional de Justiça, o modelo do Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais) de São Paulo, onde for possível.

ConJur — Qual é o modelo?

Peluso — Os juízes do Dipo só supervisionam os inquéritos. Nenhum deles recebe denúncia, nem julgam. Eles trabalham exclusivamente no controle da atividade da polícia judiciária e do Ministério Público, dentro do inquérito. Quando há denúncia, ela é distribuída para os juízes das varas criminais, que são outros. É uma ótima sugestão para aperfeiçoar não apenas o funcionamento da polícia judiciária, mas também o controle dela.

ConJur — Ainda há razão para manter em vigor a Súmula 691 do STF, que impede o tribunal de analisar pedido de Habeas Corpus contra decisão monocrática de tribunal superior?

Peluso — Fui eu quem propôs a revogação ou atenuação dessa súmula porque o Supremo não tem escapatória: se o ato praticado pelo relator de tribunal superior, ainda que seja em liminar, configura constrangimento manifestamente ilegal, o STF tem de sanar a ilegalidade. Agora, é preciso levar em conta o argumento dos outros ministros. Para eles, se cancelarmos a Súmula 691, o Supremo ficará entupido com o volume de pedidos de Habeas Corpus que irá subir.

ConJur — Mas já não sobe, porque os advogados sabem que há a chance de a súmula ser superada?

Peluso — Minha avaliação é que a existência ou a inexistência da Súmula 691, hoje, não muda nada, exatamente porque o tribunal está superando a súmula naqueles casos em que fica provado haver patente ilegalidade, como, por exemplo, quando se contrariou a jurisprudência do Supremo a respeito.

ConJur — Na última sessão do ano da 2ª Turma, o senhor, visivelmente irritado, pediu para julgar um processo penal que não estava na pauta, de um sujeito que entrou com embargos infringentes e de declaração. Os embargos foram rejeitados e o senhor determinou a imediata certificação do trânsito em julgado e a intimação por telex. Por quê?

Peluso — Porque a punibilidade seria extinta, por prescrição, agora em fevereiro, pois estavam apresentando recursos francamente protelatórios só para alcançar a impunidade por meio de consumação da prescrição penal.

ConJur — Além de atitudes como essa que o senhor tomou, o que mais o Judiciário pode fazer para evitar que as pessoas usem a Justiça para protelar o cumprimento de obrigação?

Peluso — Os juízes têm de usar os poderes de repressão da deslealdade processual. O Judiciário não leva a sério o poder que tem para reprimir a deslealdade processual.

ConJur — Que poderes? Multa, por exemplo?

Peluso — Multa é uma medida. Há outras. Estamos amadurecendo a ideia de introduzir no Brasil institutos semelhantes aos que existem nos Estados Unidos. A repressão à deslealdade processual lá é bem retratada nos filmes, em que o juiz adverte o advogado que transpõe a lealdade no processo: “Eu mando cassar sua habilitação na Ordem se o senhor continuar com essa atitude”. O desrespeito à autoridade da corte é reprimido nos Estados Unidos de modo muito rigoroso, muito severo. Não precisamos, talvez, adotar nada tão violento, mas é preciso tomar medidas que reforcem esse poder do Judiciário de reprimir a deslealdade processual, o uso da máquina judiciária para satisfazer interesses ilegítimos. A maioria dos juízes não usa os instrumentos que já temos. É raro ver o juiz aplicar multa ou tomar atitude mais drástica dentro do processo, sobretudo na área penal onde recursos protelatórios tendem apenas a conseguir a prescrição e a impunidade, o que ajuda muito a abalar a imagem do Judiciário.

ConJur — O senhor é a favor de uma reforma processual mais profunda?

Peluso — Sou. O sistema brasileiro é um sistema bom para um Cantão da Suíça. Há uma infinidade de recursos, de coisas inúteis. Estão-se fazendo reformas pontuais que não surtem efeito prático. As medidas que produziram perceptível efeito prático foram a Súmula Vinculante e a Repercussão Geral. Estas, sim, se traduzem em números. As outras, nada ou quase nada. Mudou um pouco a execução, mas demora do mesmo jeito. Criou-se uma penhora online, muito usada na Justiça do Trabalho e que ajuda em algumas coisas, mas parece que embaraça em outras. Os empresários reclamam muito. Fala-se que empresários estão criando contas apenas para penhora, para não ficar sem capital de giro e dinheiro de investimento. Mas parece que a reforma do júri foi acertada do ponto de vista prático porque concentra todos os atos do processo em uma audiência, passando-se imediatamente para o júri. Acho que deveria ser reunida uma comissão de alto nível para repensar o Código de Processo Civil e o de Processo Penal. Não adianta reformar o Código Penal, por exemplo. A maioria acha que resolve problema criar figuras de crime. Isso é equívoco grave. As figuras e penas de crime que nós temos são mais que suficientes.

ConJur — Aumentar pena não diminui a criminalidade.

Peluso — Não adianta nada. Só atrapalha. A exacerbação de certas penas leva os juízes a terem problemas de consciência para aplicar a punição que seja muito severa. Há um exemplo ótimo disso que me foi dado por um professor da Universidade de Ottawa, que esteve aqui no Supremo recentemente. Nós conversamos sobre o problema de se fixar penas mínimas — a constitucionalidade da pena mínima ainda não foi, mas, dias menos dias, será discutida aqui. Ele contou o seguinte caso. Uma moça sem nenhum antecedente criminal viajava do Canadá para a Europa e encontrou um conhecido no aeroporto. Ele pediu-lhe que levasse um pacote até determinado país. Era droga. Ela foi pega e processada. Um tribunal do Canadá encontrou-se em um dilema terrível porque a pena mínima prevista para tráfico internacional de drogas é alta e foi considerada exagerada para o caso da moça, dadas as circunstâncias do fato. O tribunal esteve inclinado a não aplicar a pena mínima porque era desproporcional ao fato.

ConJur — O Supremo já discutiu algo parecido?

Peluso — O Supremo tem jurisprudência firme no sentido de que não se pode aplicar pena menor que a mínima, salvo nos casos de causas especiais de diminuição. Mas não podemos considerar atenuantes comuns, em casos como o dessa moça canadense? Ela poderia ser equiparada a um profissional que vive de levar drogas para outros países, só porque foi imprudente ou muito leviana? O STF, algum dia, certamente discutirá isso.

ConJur — É justo tratar igualmente o profissional e a moça que foi enganada?

Peluso — O fato típico abstratamente considerado é o mesmo. Mas o histórico, o fato