A Politica Oficial de Combate a Lavagem de Dinheiro
A Política Oficial de Combate a Lavagem de Dinheiro
“A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir”(…) “Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra, a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal” (Rudolf Von Ihering. A luta pelo direito, trad. João de Vasconcelos, 6a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 1)
1.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Quando se busca analisar a política de que se vale o Estado no combate a tão intrigante problema da sociedade contemporânea, frustra concluir, com pouco esforço de observação, que esta se limitou em atender pressões externas e Tratados Internacionais assinados pelo Brasil, cuja raiz centra-se na questão dos crimes oriundos do narcotráfico e os temores surgidos a partir de tal constatação2 . Estas obrigações internacionais contraídas pela adesão a estes Tratados, resultou no uso abusivo do Direito Penal como fórmula máxima da prevenção da preocupante conduta da lavagem de capitais, pouco fazendo o Estado para investir contra tal prática em outras áreas.
Tal conclusão libra-se na certeza de que pouco se fez, desde a assinatura dos Tratados referidos, nas ações de combate a lavagem de dinheiro, além do uso desmedido e perigoso de leis penais extraordinárias, que primam pela violação dos princípios garantistas, conquistados ao custo do sangue e luta de muitos (anônimos ou não), que sempre primaram por um direito voltado para o subjetivismo e para a proteção dos direitos fundamentais das pessoas, em detrimento das intervenções punitivas e exacerbadas do Estado3 .
Faz-se mister esclarecer que o tema em análise necessita ser abordado tanto sob o prisma da Criminologia, como do Direito Penal, que por vezes serão enfocados conjuntamente, eis que a questão da lavagem de dinheiro, atrelada ao equivocado conceito de crime organizado, possibilita tal apreciação sob ambos os focos, sendo necessário advertir o leitor sob a forma de elaboração do texto em apreço.
Importante também esclarecer que não se ignora a necessidade do uso do Direito Penal como forma de prevenção e repressão ao combate à lavagem de dinheiro, pois ainda que não seja plausível precisar com exatidão a definição do bem jurídico tutelado, pois é possível encontrar as mais diversas posições quanto a este, como por exemplo: “normalidade do sistema econômico-financeiro de um país”4 ou “a própria ordem socioeconômica”5 , é fato inconteste que não se pode deixar de reconhecer a existência de uma pluralidade ofensiva na atividade criminosa destinada a reciclar capitais ilícitos, atingidos pelas mais diversas formas de criminalidade direcionada à lavagem de dinheiro6 , atividade que reclama a tutela penal.
A questão é policrômica, fruto de uma realidade criminológica contemporânea “bastante distinta da que serviu de base para a construção dos tipos penais tradicionais”, realidade esta que é fruto de uma complexa criminalidade que se insurge contra a ordem econômica, que merece uma regulamentação penal mais específica e abrangente, que se distancia da chamada criminalidade tradicional7.
Contudo, tal realidade não pode autorizar a supressão de garantias constitucionais, quer na elaboração do tipo, quer na inversão tácita de princípios esculpidos na Constituição Federal, que estão sendo sumariamente ignorados pelo legislador e pior: encontrando guarida na jurisprudência pátria que, sob o argumento do “impacto social causado pelo delito”8, está dando início a um processo de desvio dos conceitos originais e fundamentadores da intervenção punitiva, “para adotar conceitos desestruturados e anômalos, que modulam o chamado direito simbólico ou retórico”9, fruto direto da política utilizada na busca do combate a esta modalidade de ilícito.
2.
O COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
2.1
Ligação com a lavagem de dinheiro
É preciso sempre, em face do já mencionado caráter policrômico do fenômeno, ter presente que crime organizado e lavagem de dinheiro são temas interligados, tornando necessário que, para a compreensão do segundo, se recomende em um primeiro momento à delimitação do que se compreende como crime organizado e das questões a ele relacionadas10.
Em um primeiro plano deve-se ter presente que crime organizado não é prática organizada de delitos, “pois tem como dado característico a duração, o que o aproxima da idéia de instituição”11. Por outro lado, no crime organizado, percebe-se a existência de pessoas das mais diversas camadas sociais, desempenhando tarefas distintas, aproximando-se também da idéia de empresa, na medida em que surge como um verdadeiro negócio com intuito de lucro, em determinado setor econômico ou território. Assim, são explorados em regra “a proteção, o jogo de azar, as drogas, venda de armas, prostituição, pornografia, agiotagem”12, ou seja tudo o que é lucrativo e de origem ilícita.
Nesta sentido, resta oportuno observar a advertência de Juarez Cirino dos Santos quanto à existência de dois pólos de discursos distintos sobre o crime organizado, um americano definido como conspiração nacional de etnias estrangeiras, e o discurso italiano que tem por objeto o estudo original da máfia siciliana. O estudo desses discursos pode contribuir para desfazer o mito do crime organizado, difundido, reduzindo os efeitos danosos deste conceito sobre os princípios de política criminal do Estado democrático de direito13. Assim, partindo-se deste enfoque, forçoso observar os postulados da criminologia no enfrentamento do problema e suas conclusões que não estão sendo recepcionadas pela política de combate a lavagem de dinheiro.
2.2
O problema dos discursos do poder
A expressão crime organizado (organized crime) foi cunhada pela criminologia americana para determinar um feixe de fenômenos criminais pouco definidos, atribuídos a empresas do mercado ilícito, criado pela lei seca (Volstead act, 1920). Tal discurso, originário das instituições de controle social, nasceu com o objetivo de estigmatizar grupos sócias étnicos (italianos), pois o comportamento criminoso não seria uma característica da comunidade americana mas sim de um submundo constituído por estrangeiros, criando teorias criminológicas fundadas na noção de subcultura e desorganização social, seria uma conspiração contra o povo americano promovida por organizações ligadas a grupos étnicos estrangeiros. Este conceito explorado politicamente para difundir pelos meios de comunicação de massa para justificar campanhas de lei e ordem, muito eficazes como estratégia eleitoreira de candidatos. Extinto o mercado oriundo da criminalização do álcool o perigo do crime organizado foi deslocado para o tráfico de drogas, novo mercado ilícito com lucros fabulosos oriundo da criminalização das drogas, promovido mundialmente pelo governo americano, sob o mesmo paradigma da conspiração contra o american way of life14.
Este conceito, seria, na análise de Juarez Cirino dos Santos, “do ponto de vista da realidade, um mito; do ponto de vista da ciência, uma categoria sem conteúdo; e do ponto de vista prático, um rótulo desnecessário”15. Mito porque estudos sérios demonstraram que, sem negar a óbvia existência de bandos e quadrilhas nos EUA, mostraram na verdade a desorganização das famílias mafiosas, ao contrário dos bilhões de dólares provenientes da atividade ilícita, não passariam de pequenos crimes e contravenções menos lucrativos do que qualquer atividade regular. Na verdade o suposto crime organizado não passava de atividades de grupos desarticulados, sem a organização estrutural difundida pela mídia americana. Provas como a do arrependido Tomaso Busceta e outros, seriam contraditórias e não confiáveis, produzidas pelo sensacionalismo jornalístico, e pela necessidade política de bodes expiatórios das culpas sociais16. Acientífico porque buscava abranger uma série de fenômenos diversos como tráfico de drogas, de armas, extorsão, jogo proibido, prostituição – incluindo hoje – lavagem de dinheiro, absolutamente carente de conteúdo jurídico penal. Desnecessário, porque não designaria nada que não estivesse contido no conceito de quadrilha ou bando17.
Entretanto, não obstante tais conclusões, o conceito de crime organizado americano permite realizar funções políticas específicas, tais como: legitimar a repressão de minorias étnicas, justificando restrições externas à soberania de nações independentes, como a intervenção americana na Colômbia, por exemplo, impondo diretrizes na política criminal local, formuladas para resolver problemas sociais internos dos EUA, em razão de sua irracional política oficial de combate as drogas18.
Quanto ao discurso italiano o prisma modifica-se na medida em que se percebe que o crime organizado é na verdade a atividade da própria Máfia, “uma realidade sociológica, política e cultural secular da Itália meridional”19, que se traduz em associações e estruturas empresariais constituídas para atividades lícitas e ilícitas, que praticariam contrabando, tráfico de drogas, extorsão, assassinato, etc., passíveis de definição como quadrilha ou bando, mas inconfundíveis com o conceito indeterminado de crimine organizzato.20
Originalmente dirigidas à repressão de camponeses em luta contra o latifúndio, as organizações de tipo mafiosos evoluíram para empreendimentos urbanos, atuando na construção civil, contrabando e da extorsão sobre o comércio e a indústria, assumindo, progressivamente, características financeiro-empresariais, “com empresas no mercado legal e a inserção no circuito financeiro internacional para lavagem do dinheiro do tráfico de drogas”21.
Na Itália, existiria uma relação da Máfia com o poder público como troca de bens (um mercado de proteção recíproca): A Máfia garantiria votos com sua capacidade intimidatória, produzindo consenso social e o político garantiria impunidade, contratos, licenças, etc., fazendo com que cargos públicos sejam financiados com dinheiro ilegal.
Esta característica da Máfia italiana demonstra que o discurso da criminologia italiana busca esclarecer a realidade doméstica do fenômeno mafioso, em seu próprio contexto histórico-cultural, sendo útil para mostrar que organizações de tipo mafioso são “estruturas dotadas de organização empresarial definíveis como quadrilha ou bando”22, sendo um produto que surge do próprio ecossistema social, fazendo com que na esteira do pensamento de Juarez Cirino dos Santos, concluirmos também que não pode simplesmente ser transferido para outros contextos, como por exemplo o Brasil, sem grave distorção conceitual, pois não se conhece, ainda, estudos conclusivos sobre a realidade nacional, limitada a reportagens de cunho jornalístico, desprovida de comprovação científica.
Contudo, a resposta penal contra o chamado crime organizado é semelhante em todo o mundo, não se encontrando discrepâncias significativas entre a política de combate brasileira e as demais. Essa realidade, termina por legitimar a ampliação de poderes da polícia, da justiça e da política em geral, basicamente: a) redução de complicações legais e introdução de segredos processuais; b) oferece um tema de campanha eficiente para os políticos como por exemplo a melhor política de combate ao crime organizado e a lavagem de dinheiro.
Esta realidade está a demonstrar que a política oficial de combate a lavagem de dinheiro aproxima-se do simbolismo, como espécie de demonstração de que o Estado realmente se preocupa com um problema preocupante, criando leis penais repressivas, limitando garantias constitucionais, excluindo da discussão o efetivo combate as causas do aumento da criminalidade e não seus efeitos, buscando encobrir a falta de capacidade política na resolução de problemas comunitários, que não pode ser nem compensada, tampouco torna o Estado o garante da lei e da ordem pela via do Direito Penal.
3.
O TIPO PENAL DE LAVAGEM DE DINHEIRO E OS PROBLEMAS DA LEI 9.613/98
Não obstante aos inúmeros discursos existentes sobre o tema, fato é que “a tipificação da lavagem de dinheiro mostra-se fruto, antes de mais nada, de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”23. Tais compromissos são decorrentes da transnacionalidade desse delito, oriundo de atividades das organizações criminosas que se aproveitaram da interligação do sistema econômico-financeiro mundial, fazendo com que uma cooperação internacional pudesse oferecer uma maior eficiência a esta modalidade delitiva.
Assim, conforme leciona Pitombo, “A estratégia internacional focou-se no objetivo de perseguir o produto e o proveito de determinados crimes; em particular o dinheiro obtido pelas organizações criminosas por meio do tráfico ilícito de entorpecentes”24. Afinal a dificuldade causada pela posse do dinheiro em espécie constitui o verdadeiro problema para as organizações criminosas, em razão do espaço físico que ocupam, levantando suspeitas sobre operações de grande valor, surgindo à necessidade de lavá-lo. Tal fato permite a identificação da origem criminosa do montante e de tomar medidas com o intuito de impedir a utilização deste dinheiro25. Desse modo, por meio de diretrizes estabelecidas por convenções internacionais tornava-se imperioso que as nações se comprometessem na criminalização do crime de lavagem de dinheiro, dentro de determinados parâmetros26.
Seguindo a tendência o legislador brasileiro em 3.mar.1998, o Presidente da República sancionou a lei 9.613/98, publicada no dia seguinte, vigorando o rol de crimes previsto no caput do art. 1°: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo (e seu financiamento, acréscimo em face da lei 10.701); III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o Sistema Financeiro Nacional; VII – praticado por organização criminosa. Pena: reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos e multa”. Acrescidos do inciso VIII, incluído pelo art. 3° da lei 10.467/2002: VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira (art. 337-B, 337-C, 337-D, CP)27.
Nesta lista de crimes antecedentes, não foram elencados os crimes contra a ordem econômica e tributária, cuja inserção no rol dos crimes de lavagem de dinheiro já é objeto do projeto de lei n° 2500/2003, apresentado em 14.nov.2003 pela Comissão Parlamentar de Inquérito com finalidade de investigar operações no setor de combustíveis, relacionados com a sonegação de tributos, máfia, adulteração e suposta indústria de liminares.
Este rol taxativo de delitos antecedentes cria um problema peculiar ao aplicador do direito relacionado à subsunção típica a norma – que não se resume as naturais dificuldades trazidas pelos tipos múltiplos alternativos – centrado na questão normativa que impõe a existência de um tipo antecedente, fruto da redação do art. 2°, II, da lei 9.613/98, que dispõe: “o processo e julgamento dos crimes previstos nesta lei. (…) II – independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no art. anterior, ainda que praticados em outro país”.
Se não causa espécie o fato de se exigir um crime antecedente, ou delito acessório, para a configuração do crime de lavagem de dinheiro pois, “sem a ocorrência do crime anterior, é impossível originar-se o objeto de ação da lavagem de dinheiro e, via de consequência tipifica-la”28, ante a um Direito Penal que se quer garantista, e uma Constituição Federal que dispõe sobre o princípio da presunção de inocência, incomoda a redação do art. 2°, II, da lei 9.613/98, quando pretende desvencilhar a confirmação legal (via sentença) do crime antecedente para a configuração da lavagem de dinheiro.
Não se pode ignorar simplesmente que a redação da norma exige como elemento objetivo do tipo, para a configuração da lavagem de dinheiro, a prática de um crime antecedente a conduta principal que se quer punir que é a da lavagem de capitais. Sendo assim, a exclusão do crime inviabiliza a subsunção típica, ainda que o legislador, talvez para encobrir eventual imperfeição da elaboração da norma, consigne que meros indícios dos crimes elencados como antecedentes, permitam a caracterização do delito de lavagem de dinheiro.
Esta realidade está a indicar que política adotada, pretende dar respaldo legislativo (ainda que inadequado) a evidente gravidade social oriunda da lavagem de dinheiro, contudo os reflexos destes problemas desencadearam uma série de questões graves que, se não observadas, aumentarão a insegurança jurídica, desnorteando, ainda mais, o entendimento jurisprudencial, que tem enveredado por caminhos tortuosos na apreciação do caso concreto, fruto de uma política criminal tendenciosa e mal conduzida que, cada vez mais, traz para o direito positivo uma série de normas que causam verdadeira perplexidade ao operador do direito, conforme se pretende demonstrar no tópico seguinte.
4.EFEITOS DA POLÍTICA CRIMINAL NA LEI DE LAVAGEM DE CAPITAIS
4.1
Inversão do ônus da prova
Consequência direta de uma política de combate à lavagem de capitais, centrada no uso do Direito Penal como meio supostamente mais eficaz para o sucesso da empreitada, via de consequência, traduz-se em elaboração de normas, visivelmente anti garantistas, e dogmaticamente censuráveis.
Na linha do raciocínio ora desenvolvido, chama atenção o art. 4°,§ 2° que, quanto à apreensão e seqüestro de bens, teria invertido o ônus da prova, ao dispor que: “(…) O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou sequestrados quando comprovada a licitude de sua origem”.
Não faltam vozes para elogiar e confirmar o estabelecimento de verdadeira inversão do ônus da prova, que não seria inconstitucional e que teria criado um instrumento necessário para a sistemática da lei como um todo29.
Mas esta brecha da inversão do ônus da prova, indiscutivelmente prevista na lei, afronta à previsão do art. 5°, LIV, da Constituição Federal, que dispõe: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A política de combate à lavagem de dinheiro librou-se tanto no Direito Penal, que se esqueceu de alguns de seu principais princípios (por exemplo: presunção de inocência e culpabilidade), pretendendo um “processo legal” com inversão do ônus da prova, como pretende impor a lei de lavagem de capitais, que ou bem é fruto da ignorância do legislador sobre os pilares do Direito Penal, ou bem é a demonstração maior de uma política criminal baseada nos movimentos de lei e ordem, tão ao gosto da cultura da América do Norte.
É claro que – felizmente – quanto ao ônus da prova do crime de lavagem de dinheiro, para prolatação de decreto condenatório, nenhuma alteração nos trouxe a legislação em tela, que permanece com a acusação. Contudo, abriu um perigoso caminho, que tende a ser trilhado nas leis penais extraordinárias.
4.2
O paradoxo das sanções administrativas
Outro ponto que permite concluir pelo desequilíbrio da lei de lavagem de capitais, pode ser percebido quando se verifica – pelo estabelecimento de regras especiais de processo e outras disposições administrativas – uma pretensa facilitação da investigação de tais práticas, quando impõe a um extenso rol de pessoas jurídicas e físicas a obrigação de desempenhar muitas tarefas burocráticas, que deveriam ser praticadas pelo Estado, impondo o dever de identificação de clientes, conservar registros de operações e transações e comunicar estas à autoridade administrativa competente30.
Conforme disposto no art. 12, da lei 9.613/98, as pessoas elencadas no art. 9°, que deixarem de cumprir as obrigações impostas nos arts. 10 e 11, estão sujeitos as sanções previstas, mediante o devido processo administrativo. Em caso de condenação poderão ser aplicadas (cumulativamente ou não), as seguintes punições: I – advertência; II – multa pecuniária variável de um por cento até o dobro do valor da operação, ou até duzentos por cento do lucro obtido ou que presumivelmente seria obtido pela realização da operação, ou , ainda, multa de até R$ 200.000,00 (duzentos mil reais); III – inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas referidas no art. 9°; IV – cassação da autorização para operação ou funcionamento.
O que a simples leitura das sanções já permite demonstrar é a existência de um impressionante desequilíbrio na disciplina dada ao tratamento das penas pecuniárias quanto à sanção administrativa e penal, posto que a primeira poderá atingir o agente que, embora não tenha praticado um ilícito penal, pela previsão do § 2° do art. 12 da lei dos crimes de lavagem31, será punido de forma muito mais severa do que o criminoso32. A questão é que, no caso concreto, será possível que “o réu lavador venha a ser condenado judicialmente a pagar ínfima pena de multa, ao passo que ao agente financeiro se aplique, por decisão administrativa, pena pecuniária de grande valor”33.
Se, a princípio, já se pode questionar a inaplicabilidade de sanção administrativa mais grave, do que a própria sanção penal, em face do princípio da proporcionalidade, também se pode questionar a política adotada, que se mostra – como se demonstrou – desequilibrada e, flagrantemente, opressora, propiciando interpretações que não adotem o raciocínio ora desenvolvido, o que, certamente, resultará em enorme injustiça.
4.3
Delação premiada
Aqui resta, mais uma vez, lamentar a postura adotada pelo legislador brasileiro que nada mais fez do que admitir a máxima de que os fins justificam os meios.
Ao invés de adotar medidas preventivas verdadeiramente eficazes, priorizando um direito penal muito mais voltado para a prevenção do que a repressão, e que se volta à retribuição do infrator, optou o legislador pátrio em trazer para seu lado o próprio criminoso, sob a alcunha de “réu colaborador”. A questão é que, se de forma consciente ou não, a lei brasileira reconheceu o valor (ainda que provavelmente remoto) de figuras que ficaram famosas, justamente, por entrarem para a história da humanidade pela porta dos fundos como, por exemplo: o apostolo Judas Iscariotes (o traidor de Jesus Cristo), Domingo Fernandes Calabar (que durante a época da invasão dos holandeses no nordeste, passou para o lado holandes em 1632), Joaquim Silvério dos Reis (que denunciou a organização de
uma conspiração que desejava transformar a Capitania de Minas Gerais em um estado livre, liderada por Joaquim Jose da Silva Xavier, o herói nacional Tiradentes, enforcado graças ao traidor), etc.. Se, de fato, não cabe o questionamento moral da opção do legislador brasileiro, do ponto de vista da análise da política adotada ante ao combate a lavagem de dinheiro, resta observar que ficou devidamente consignado em nosso direito positivo, o reconhecimento do fracasso da política criminal adotada para o enfrentamento da criminalidade contemporânea.
Se lamentar é o que resta, tendo em vista que nada obsta que o Ministério Público se reúna com o criminoso (ou criminosos), compactuando – ainda que na busca de uma maior aplicação da lei penal – com o próprio inimigo da sociedade organizada, pior seria admitir a delação premiada como elemento de prova, em face da evidente realidade de que sempre estará revestido de parcialidade, mas esta é uma questão que não é o enfoque deste trabalho e necessita um maior aprofundamento.
Por outro lado, não se torna imperativo um estudo pormenorizado para perceber os reflexos negativos que surgirão no uso da delação premiada, sendo o que mais atemoriza a possibilidade da produção de uma prova, sem o crivo do contraditório. Pior: trazer para dentro do processo um elemento (delação) evidentemente parcial, no mínimo tendencioso, eis que beneficia diretamente o infrator, deixando a possibilidade de formar uma convicção do julgador equivocada que, se bem trabalhada, poderá imputar a responsabilidade ao terceiro(s) inocente. Quem ousaria pensar o contrário?
4.4
Reflexos na jurisprudência pátria
As consequências preocupantes a que nos referimos, da política adotada para o combate a lavagem de dinheiro, já se pode sentir nos Tribunais pátrios que vão fixando alguns entendimentos preocupantes.
Exemplo desta realidade pode ser facilmente percebida da leitura de alguns acórdãos, que vêm reconhecendo, dentre outros, que o impacto social causado pelo delito, periculosidade do agente, complexidade do delito, magnitude da lesão (figuras não previstas em lei como elemento das modalidades de prisão cautelar) servem como justificativa ao decreto da prisão preventiva34.
Da mesma forma, é possível observar o uso infundado do termo crime organizado em diversos acórdãos35, aparentemente, com o intuito de demonstrar a gravidade do fato julgado, sem que a lei penal pátria tenha criado tal modalidade delitiva,
bem como a doutrina já tenha assinalado a impropriedade absoluta do termo36, já previsto no ordenamento jurídico brasileiro no art. 288 do Código Penal37.
A questão que precisa ficar muito bem esclarecida é que não existe a norma penal pertinente a figura do crime organizado, sendo sua utilização fruto da absorção de uma política criminal que começa a fazer – preocupante – eco em nossos Tribunais.
Embora o assunto conceitual já tenha sido tratado no item 2 do presente, faz-se mister consignar que a expressão “crime organizado” possui forte apelo popular e que, segundo Zaffaroni38 é impulsionada pelos próprios delinqüentes, que apareceriam como indivíduos poderosos e dignos de admiração. Certo é que, pior do que esta realidade, é perceber que os efeitos políticos da adoção do termo resultaram em justificativa para que regimes totalitários justificassem ações ditatoriais, como já se pode sentir no posicionamento da jurisprudência, que vem firmando o entendimento de que, na fase do inquérito policial, não vigoram os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, negando acesso aos autos ao advogado constituído.
Lamentável que os Tribunais brasileiros creditem (ainda que não explicitamente), o não acesso da defesa aos autos do inquérito policial, a uma melhor apuração das provas que constarão no processo criminal. Muito pelo contrário!
É forçoso reconhecer, ante aos conhecidos abusos e excessos cometidos em sede policial, que a presença do advogado (e portanto o exercício da ampla defesa, negado pela jurisprudência em sede investigativa) só faria referendar a prova produzida, não se podendo compreender a postura dos Tribunais pátrios, a não ser que se conclua que foram, definitivamente, afetados pela política adotada ao combate a lavagem de dinheiro, centrada no uso abusivo do Direito Penal, não se podendo calar ante a uma postura, evidentemente, contrária a Constituição Federal, erigida com base nos princípios garantistas.
Não bastasse ignorar a necessidade, e a legitimidade, da presença da defesa (em especial acesso aos autos para não permitir – inclusive – a formação de prova falsa) em sede de inquérito, solidificou-se perigoso precedente jurisprudencial39, que autoriza o recebimento de denúncia, nos casos de crimes de autoria coletiva, sem a descrição da conduta de cada agente, absurdo já ressaltado em artigo que bem resume a hipótese, da lavra do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho40, onde se demonstra o risco em que se colocou o Poder Judiciário, ao relaxar em seu mister – imprescindível – de garante da Constituição.
Não cabe nestas reflexões analisar os reflexos dogmáticos dos efeitos que a jurisprudência já acusa estar sofrendo, pois não é o cerne da questão analisada, mas não se poderia deixar de consignar quão preocupante é constatar que, ao relativizar a interpretação do texto legal: permitindo a decretação da prisão cautelar calcada no resultado do delito, e não nos elementos contidos na norma legal, ou seja: no art. 312 do Código de Processo Penal; admitindo denúncia genérica nos crimes de autoria coletiva, a revelia do texto inscrito no art. 41 do Código de Processo Penal, ao negar em sede de inquérito o princípio da ampla defesa, previsto no art. 5°, LV, da Constituição Federal, deixa o Poder Judiciário de exercer a sua função de guardião da lei para assinalar que, a política adotada – na prática – tem o condão de tornar letra morta as garantias constitucionais, que não passariam de fato, de mera retórica41, não restando outra alternativa senão concluir que se constituem, somente, de mera aparência, que não traz nem segurança jurídica, nem segurança política.